terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Procura-se uma Escola (Texto de 2008)


(Algum tempo depois de escrever o texto sobre a experiência de meu pai com a Escola eu escrevi sobre as lembranças de minha mãe sobre o seu tempo de estudante. O texto é romântico - porque muito pessoal - mas oportuniza a reflexão responsável sobre o que estamos fazendo com a Escola dos dias de hoje. Na minha opinião, as coisas não mudaram muito...)



Eu quero encontrar a Escola em que minha mãe acredita.
Toda vez que escolhia o arroz para o almoço minha mãe me contava histórias sobre o seu tempo de estudante.  E era com tanto orgulho que o fazia!  Eu quero saber onde essa Escola está.
Na memória da minha mãe ficou tudo, apesar de sua passagem tão efêmera por lá.  E até hoje seus olhos ficam cheios de emoção quando se lembra do lugar em que há tantos anos passou tão pouco tempo de sua vida.  Que estada marcante!
Minha mãe se lembra de que as suas Professoras se vestiam bem, andavam sempre perfumadas e arrumadas.  Eram carinhosas e atenciosas com seus alunos. Perguntavam-lhes por que faltavam às aulas, deixavam os alunos mais bagunceiros “tomando conta da turma” quando precisavam se ausentar.  Ensinavam-lhes bordado, desenho, e sempre elogiavam os alunos, até mesmo aqueles que não tinham muitos dons.  Falavam o Português correto, e sabiam explicar o motivo pelo qual uma palavra se escrevia com “x” e não com “ch”.
Da turma da minha mãe alguns meninos tornaram-se médicos.  Um deles cheguei a conhecer.  Sua mãe vendia empadas para lhe custear os estudos.
Mas naquela Escola tão perfeita não havia lugar para a minha mãe.  Na casa dela eram todos muito pobres (minha mãe era a caçula de cinco!) e ela sempre dizia que enquanto a Professora dava aulas ela ficava tentando imaginar um jeito de ganhar um dinheirinho para ajudar a minha avó: primeiro tentou vender os desenhos que aprendera a fazer nos azulejos, depois começou a fazer umas trancinhas de couro para uma fábrica de sandálias que pagava por produção. Outra vez tomou conta de um bebezinho para uma vizinha.  E chegar em casa com dinheiro foi ficando bom, e poder ganhar mais significava ter que sair da Escola, e na hora de optar, diante do convite para trabalhar no balcão da farmácia do bairro não houve muita dúvida: já naquele tempo a Escola perdia a concorrência para o mundo “lá fora”...
Era trabalhar o dia inteiro e dar todo dinheiro na mão da minha avó no final do mês.  Minha mãe tinha quatorze anos nesta época.  Caminhava um “pedação” para economizar o dinheiro do bonde para ajudar em casa.  E nunca mais voltou para a Escola.
Ela conta isto com orgulho, mas desconhece algumas coisas que, por eu ter avançado um pouco mais (nos estudos, não na sabedoria), percebo.  Minha mãe ficou com o desejo de fazer Faculdade de Farmácia escondido no coração.  Ela própria manipulou muitos remédios, anotava as bulas no Livrão, mas não pôde ir além.  Pôs a culpa no cansaço do trabalho, depois no casamento, depois nos filhos, depois na idade.
A Escola que separou meu pai dos seus sonhos fez o mesmo com a minha mãe.  Mas o fez de maneira tão capciosa que ela nem se deu conta.  E nos criou nos obrigando a estudar, nos dizendo que só a Escola dá futuro, que quem não estuda não é nada na vida.  Minha mãe é tudo na vida: batalhadora, inteligente, honesta, segura, cautelosa, organizada, precavida.  Minha mãe é tudo na minha vida também.  E na vida da minha irmã, tenho certeza.
Eu aprendi que há algo de bom na Escola com a minha mãe.  Fui buscar lá aquilo tudo o que minha mãe contava enquanto escolhia o arroz: primeiro estudando, depois trabalhando, e ainda busco.  Estou procurando a Escola em que minha mãe acredita até hoje, mas não encontrei.  E olha que ela ainda acredita: está orgulhosa de mim, porque serei Diretora de Escola em breve.
O tempo passou e hoje eu tenho um filho, mas não escolho arroz.  Um bom motivo pra eu não ter que contar pra Antônio sobre a Escola do meu tempo.  Só espero que ter passado tanto tempo dentro de uma Escola não tenha feito com que eu me desviasse dos bons valores que minha mãe me ensinou, e que eu saiba passá-los para meu filho, sem vícios.  Admiro minha mãe pelo que ela foi e ainda é.  E sinto muito pela Escola que não a convenceu a ficar.  Dona Vanda hoje seria uma excelente farmacêutica.  Quem foi que saiu perdendo?

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Quando leio seus textos, certifico-me ainda mais do encontro dos "comuns". Não os comuns sem sentido, importância e significado, mas pessoas com histórias de vida que as unem. Como filha de pedreiro que foi mestre de obras na construção da Universidade Santa Úrsula e tinha o sonho de ver seus filhos numa universidade; e de uma mulher que não hesitou em ser esposa e mãe, acreditando que esse seria o maior incentivo para educar e acompanhar a prosperidade dos filhos, salta-me o coração, a emoção transmitida nesse texto.
    Uma emoção feliz! Gratamente feliz por conhecer e ter como amiga alguém que consegue transmitir o que eu gostaria de ter escrito em homenagem aos meus queridos pais, que estiveram juntos enquanto Deus permitiu, superando com o amor que transcende os sentimentos a distância entre a Região dos Lagos e o Rio de Janeiro.
    Amo-te, amiga, no hoje desse dia!

    ResponderExcluir
  3. Belo texto, menina.
    Faz muito tempo que não vejo a Dona Vanda e tenho muitas lembranças dela.
    Aqueles anos de transporte escolar são inesquecíveis. Eu lembro da sua voz, das suas roupas, dos acessórios que ela usava para se enfeitar, dos gritos na janela do carro, xingando os motoristas que dirigiam mal... rsrs. Eu lembro da buzina do fusca, desesperada (a buzina), que percorria toda a minha rua nos mais altos decibéis, até que eu e aparecesse no portão... Lembro de um dia em que fui elogiado por ela quando paguei um pedaço de baiano (cuscuz) para cada coleguinha do fusca e para ela também, lógico... rsrs... Boas lembranças da Dona Vanda...

    Espero poder vê-la em breve...

    Anderson Ceia

    ResponderExcluir