domingo, 25 de março de 2012

Mercedes

(Pra quem tem uma amiga guerreira chamada Mercedes Basilio. E pra quem ainda não teve o prazer de conhecê-la. A vida é boa.)
Nós não tivemos oportunidade de conviver por muito tempo. Foram algumas reuniões de trabalho. Depois vim para Iguaba e pouco nos encontramos, desde então.
Mas sempre que estamos juntas, um carinho enorme nos aproxima e convida ao abraço: somos amigas, mesmo assim.
Mercedes vem há algum tempo passando por provações em sua vida. Não temo a palavra provação. Muito pelo contrário, acho a provação uma dádiva. Poucos são os escolhidos por Deus para passarem por ela. Os que a vencem, então, raríssimos abençoados!...
Eu quero escrever isto hoje, e já está perto da meia-noite. Tentei dormir, não consegui. Preciso escrever esta “carta” pra Mercedes.
Minha amiga, quero lhe dizer da admiração com que fui para casa no dia de nosso encontro (em reunião de trabalho, também): você é uma guerreira!
É tanta vontade de gritar pra todo mundo ouvir que a vida é boa que, por mim, postaria neste blog diariamente. E eu estou, neste momento, com a imagem dos seus joelhos me sorrindo: a vida é boa.
Se eu pudesse dar a você um novo nome, a chamaria de Vida, daqui por diante. Eu não acompanhei de perto o que lhe aconteceu. Lembro-me de vê-la sempre acompanhada de uma bengalinha de madeira. E só. Depois, fui tomando ciência de seu estado de saúde pelas informações das pessoas no trabalho. Eu soube da primeira e da segunda operação. Superficialmente ia me inteirando do que acontecia...
Com o “advento” do facebook, estive ao seu lado na romaria para a operação. Foram orações, pedidos de doação de sangue, orações, expectativas, orações, palavras de ânimo, fé, coragem... Você foi, esteve e retornou. Eu fui, estive e retornei com você.
Vê-la na quarta-feira alegrou-me o coração: a mesma felicidade de sempre, o mesmo sorriso animado pelo batom vermelho, um tanto mais magrinha, logicamente... A bengalinha deu lugar a amparos mais fortes. Mas você estava radiante! Você se chamava Vida!
Conversas formais sobre o que lhe aconteceu, detalhes da viagem, da estadia, da operação, da recuperação... Falando a todas numa paciência como se não tivesse você suportado tudo aquilo, como se fosse um vizinho, como se contasse uma história de muito tempo atrás.
Mercedes. Mais uma para a minha coleção de admirados. Você me conquistou! E não foi quando chegou andando sozinha, independente, fulgurante, não. Foi no momento mais humilde da tarde. No momento em que nos mostrou os joelhos.
Eu vi os seus joelhos com as cicatrizes. E fiquei pensando: “como pôde esta mulher ter tido coragem de submeter-se à cirurgia do joelho direito, depois de enfrentar a mesma coisa com o joelho esquerdo?
Todas as lembranças das dores, dos sofrimentos estavam lá, na costura da perna esquerda. E Mercedes enfrentou – poderosa! – o repetir dos fatos, na perna direita, para salvar-se. Você se chama Vida, minha amiga. Seus joelhos disseram pra mim: “viva!”, quando você os mostrou.
Jamais esquecerei aquele momento. Deus me permita levar a lembrança daqueles joelhos e daquelas cicatrizes para sempre no meu coração. Talvez eu não tenha a sua coragem. Mas você me revelou que ama a vida, assim como eu.
Cicatrizes são troféus, agora creio. Ficam registradas, cravadas no corpo de quem veio ao mundo com a abençoada ousadia de viver, de superar seus próprios limites. Ora, Deus não quer um homem acomodado, ou não lhe teria dado tamanha inteligência. Deus quer o homem voando! Para isto deu-lhe mais que asas, deu-lhe sabedoria e força de vontade. Voa quem quer.
Não sei se termino este texto dizendo-lhe parabéns ou muito obrigada, Mercedes. Talvez minha obrigação seja a de dizer-lhe as duas coisas. Parabéns por receber de Deus este carinho especial de cuidar de você tão de perto!
E depois de ouvir de você que ler os meus textos faz parte de sua rotina diária – em tempos de recuperação de uma operação tão melindrosa! – só me resta agradecer. A você, pelo carinho inexplicável que sente por mim, e a Deus por tê-la posto em meu caminho.
Naquela quarta-feira, acredite, deixei de ser a Karla que eu era. Já sou outra, modificada. Deus tocou-me profundamente, e usou você para isto. Que privilégio o nosso! Segue em frente, amiga corajosa, que estou bem atrás, colhendo do que você semeia. A partir de hoje toda vez que eu fraquejar lembrarei-me dos seus joelhos. Lembrarei-me de você. Lembrarei-me de que, a despeito das (bem-vindas) provações, a vida é boa.

sábado, 17 de março de 2012

Quando a Escola produz o risco

(A Escola é vítima ou produtora do risco social? Na minha opinião, tudo o que vai, volta.)



Eu fui ao Google buscar conceitos que me certificassem de que a Escola não tem nada a ver com ele, mas não encontrei, infelizmente. Tudo o que li realçava, ao meu modo de ver, a responsabilidade da Escola sobre isto, também: o risco social.
Lendo, construí o cenário na minha cabeça: os desnutridos, os que vivem em condições precárias de moradia e saneamento. Os que não têm família, os que não possuem emprego, em suma, os cidadãos que não têm os mesmos direitos e deveres dos outros. Os excluídos. Os expulsos dos espaços da sociedade.
É mais ou menos assim que o Google define o que é risco social. E aquelas palavras soaram-me, durante a pesquisa, como melodia de conselhos de classe.
Já escrevi manifestando minha ojeriza ao protocolo da maioria dos conselhos de classe que tenho assistido ao longo destes meus vinte e oito anos de magistério. Não quero fazê-lo novamente.
Mas preciso deixar registrado aqui tudo o que vem a minha cabeça quando professores e demais educadores se reportam ao risco social como fator responsável pelo fracasso escolar.
Ora, não está a própria escola produzindo o risco social no seu entorno? Toda vez que o trabalho (trabalho?) descompromissado do professor leva um aluno a desistir e evadir, toda vez que o trabalho descompromissado do gestor perde para a concorrência comprometida das drogas ou da “ociosidade produtiva”, aumentam as estimativas dos grupos vulneráveis ao risco social da cidade. Não é assim que ele é descoberto, pelas estimativas de pobreza?
Tirando Lula e alguns poucos sortudos, que eu saiba, escola é o lugar para se ir quando se quer melhorar as condições financeiras. Era isto o que meus pais diziam quando me obrigavam a vestir o uniforme e calçar os kichutes: que eu só teria uma vida melhor, mais confortável, se estudasse. Estudar, frequentar a escola, estava ligado diretamente a “ser alguém na vida”. Alguém se lembra disto?
Quando a escola repudia o menos capaz, exclui. Quando o professor assume a postura de que só ele sabe e só ele fala, provoca a maior distância possível num relacionamento, que deveria ser pessoal (ser humano-professor + ser humano-aluno). Ele se sobrepõe, subestima o grupo, semeia a antipatia. Nada ensina. Diminui o valor da escola. Convida a sair.
O aluno tem fome. Vai para a escola, muitas vezes, para comer o que não tem em casa, o que os pais deixam de comprar para sustentar seus vícios. Os vícios do risco social em que estão inseridos, resultados que são, também, de suas escolas de outrora. Pais excluídos, sem oportunidades. Pais que um dia foram crianças que, por não terem aprendido no mesmo ritmo que a maioria dos alunos de suas salas de aula foram rotulados, expostos, e reprovados. E que tendo sido por tantas vezes reprovados desistiram de tentar.
Há aquele também que vai para a escola em busca da paz que não encontra em casa. E porque não tem em casa calmaria suficiente para dedicar-se aos estudos, às “tarefas de casa”, recebe o boletim dizendo NÃO, ao final do ano. Esse tenta de novo, matriculado por sua mãe pela necessidade do bolsa-famíla, mas não consegue outra vez, porque sua professora já o recebeu com a lembrança do aviso da sua colega de trabalho, que lecionou pra ele no ano anterior: “esse aí não sabe nada, não aprende nada!”, disse-lhe ela ao pé do ouvido, na primeira reunião de professores.
Aulas ruins, professores irresponsáveis (eu não gosto do termo desmotivados), gestores que fingem não perceber a fábrica de vulnerabilidade social que se tornou a escola. É assim que acontece: os alunos entram pela porta da frente, pulam os muros, e saem. E ainda há os professores que dão “graças a Deus” por isto. Menos um hoje, menos três amanhã, menos uma turma no final do ano.
Onde está toda essa gente que deixa a escola? A minoria segue seu destino honestamente, mesmo que trabalhando em profissões à margem da sociedade. Um grupo dessa minoria elege-se até Presidente da República! Mas a grande massa está do lado de fora dos muros da escola esperando o sinal da saída tocar. Eles assaltam alunos, funcionários e professores, oferecem crack, intimidam os pequeninos, agridem fisicamente os que apresentam comportamento suspeito.
Aí, a escola presencia diariamente acontecimentos como estes. Os funcionários sentem medo, sentem-se suscetíveis à violência. E todos se despem da responsabilidade, como quem tira o casaco dos ombros porque não sente frio.
É preciso fazer o caminho inverso. Ninguém pode ser culpado quando não se sabe o que acontece. É como sempre digo: Antônio mora só comigo, não somos uma família convencional formada por pai, mãe e filho. Ninguém me perguntou sobre isto na escola onde ele estuda. Mas quando descobrirem, aí estará a razão para todos os seus “deslizes” de criança. Bastará que atire uma bolinha de papel no ventilador e receberá o estereótipo de filho de pais separados. Livrou-se, até agora, do chavão. Não sei por quanto tempo. Talvez não tenha, ainda, alcançado o ventilador...
Escola tem deveres a cumprir. E eles estão lá, assegurados até na Constituição. E tudo o que se diz dos deveres da escola nas leis atrela seu papel à qualidade. Ninguém faz favor a ninguém quando resolve enveredar pelos caminhos da Educação. Todo mundo que presta este serviço o faz em obediência a uma legislação que reza que educação deve ser de qualidade. Portanto todo mundo tem o dever de realizar seu ofício da melhor maneira possível. Dever, não favor.
Garantir fidelidade às promessas cantadas no dia da formatura pode fazer com que o professor diminua o quadro de risco social da comunidade onde está inserido. Porque dificilmente um aluno que entre pelos portões da escola e siga seu fluxo normalmente até poder deixá-la engordará este quadro.
A responsabilidade é nossa, sim. É o que penso. É a lei do retorno, ou lei da consequência: tudo o que vai, volta. Teremos medo do que está ao redor da escola enquanto pusermos o perigo lá fora. Que tal inverter as ações?

sábado, 10 de março de 2012

Feliz reencontro

(Reencontrar meus ex-alunos depois de tanto tempo, e sentir o mesmo afeto como se a despedida tivesse sido ontem deu origem a novo texto.)


Eu estava perdida nos meus pensamentos tristes de que nada havia dado certo nas minhas coisas de amor. Mas Deus não gosta de me ver triste, e presenteou-me com um reencontro comigo mesma. Obrigada, Senhor!
Há dias tenho recebido presentes pelo facebook: tenho recebido uns jovens alegres, cheios de vida, de beleza e de atitude! Meus meninos e meninas – tão preciosos! – têm retornado pro meu coração...
Eu brinquei com as palavras no texto anterior, confusa que fiquei, tomada pela emoção de encontrar-me no retrato de minha mãe. O profundo mistério do tempo instalou-se nos meus pensamentos, nos meus sentimentos, eu me embaralhei, e quase já não sabia em que tempo estava. E Deus, soberano, atento às minhas angústias, veio consolar-me, trazendo de volta um passado em que fui tão feliz: os meus dias no Colégio Daflon Ferraz, os meus dias na Espaço Aberto Escola.
Em 1990 comecei a trabalhar no Daflon. Turmas de primeira e segunda séries. Turnos da manhã e da tarde. Crianças de sete, oito anos. Trabalhei no Daflon até 1995. Foram mais de dez turmas. E, aos poucos, eles chegam até a mim, hoje, em 2012, vinte e dois anos depois, com o mesmo carinho, recordando-se dos detalhes, mas, principalmente – e o que me deixa mais feliz – do amor que sentíamos um pelo outro.
O mesmo acontece com o pessoal da EAE: uma amizade nos uniu naqueles anos de trabalho, que foram de 1995 a 2000. No primeiro ano, uma turma pequena de terceira série. Anos depois, uma turma “da pesada”! Um desafio que se transformou em amor e cumplicidade.
Tenho escrito tanto sobre essas coisas de educar e ensinar! Tanto sobre escola! Queria partilhar com vocês desta alegria que sinto agora, porque isto está acontecendo justamente no momento em que eu mais precisava. Precisava de amor, de afeto. Precisava me lembrar de que fui, sim, uma professora dedicada, de que tentei sempre fazer o melhor, de que fui feliz. Porque já faz tanto tempo que eu, nessas minhas confusões de sentimentos, já temia estar devaneando...
É fato, graças a Deus! Fiz amigos mesmo, incluindo mães e pais de ex-alunos. Fui responsável com minha prática. Ensinei-lhes o conteúdo sem deixar de exaltar a alegria de viver, de estar com o outro, de estar entre amigos. Passeamos, brincamos, aprendemos, conversamos, contamos piadas. Fizemos muitos, muitos exercícios de Matemática, até eu me certificar de que haviam aprendido. Gostaram da Matemática, expulsei o monstro. Tenho alunos cursando Física, Meteorologia, Engenharia. Mito posto por terra.
Brincamos muito, porque criança tem o direito de brincar. Acompanhamos a queda do Palace II (quem lembra?) e aproveitamos para estudar História. E, se algum deles ainda guardou cadernos, estarão lá, também, alguns textos que compus, para “alegrar” mais as aulas. As provas tinham expressões com seus nomes. Havia um festival de estrelinhas no peito daqueles que davam conta do recado, e isto incluía, também, os que terminavam tudo por último. Respeito ao tempo de cada um.
Na minha lembrança, a confiança e o respeito dos pais. Temerosos em ver seus filhos com uma professora meio “diferente”, mas acreditando, apostando. E a confiança e o respeito dos donos das escolas, também.
Todo mundo construiu a Karla Pontes que sou hoje. Mas devo, principalmente, às crianças. Eles fizeram na época deles o que Antônio faz agora: me derrubavam, me reconstruíam. Eu ia pra casa depois de um dia de trabalho já pensando em como fazer melhor, na dúvida de saber se tinha feito direito.
No Daflon, o sinal batia para a forma. Ali mesmo a brincadeira começava. Na Espaço Aberto, eram as minhas palmas que chamavam a galerinha pra dentro. Brincadeira gostosa, também. Antes de entrar, pela manhã, cedinho, meus alunos eram recebidos por mim. Um “bom dia!” no portão (eu adorava fazer isto!), pra que ficassem certos de que eu ali estava.
Deixei as duas escolas, experimentei a lida nas escolas públicas (muita saudade, também), vim morar em Iguaba Grande. Deixei de ser professora, passei a ser “Inspetor Escolar”. Mas todos os dias em que saio de casa e entro na Secretaria de Educação ou numa escola, entro com tudo o que tenho aqui, latejando no meu coração. É essa paixão que me movimenta os passos, que me alimenta a alma. Essa certeza de que ainda posso fazer muito pelos meninos da cidade, de que posso plantar amor nos corações da gente que trabalha nas escolas.
É verdade. É assim. Afeto educa. Afeto ensina, até os conteúdos. Eu “tiquei” tudo o que havia nos meus planos de curso. E deu certo. Hoje eles estão vivendo a vida deles, usando, talvez, alguma coisa que tenham aprendido comigo. Outras coisas, eles já esqueceram. Mas de mim, não. Da Tia Karla eles se lembram até hoje...

domingo, 4 de março de 2012

O retrato

(Eu troquei a foto do perfil e encontrei-me no retrato da minha mãe. Aí, deu texto.)


Eu mudei minha foto do perfil do facebook. Sugestão de minha amiga Ordelina, em protesto contra a violência que as mulheres vêm sofrendo ao longo dos anos.
Escolhi uma foto da minha mãe para postar lá. E o fiz. Mas a simples ação de abrir o retrato na tela do computador e observá-la emocionou-me demais!
Estou lá, no rosto da minha mãe: os cabelos cacheados, curtos. Os dentes irregulares – muitos, para o tamanho da boca! - o sorriso de canto, as sobrancelhas, os olhos bem afastados um do outro, o rosto redondo...
Quando minha mãe tirou este retrato era bem mais nova do que sou agora, é certo. O lápis da vida já fez alguns contornos em mim que ela ainda não traz na foto.
Tentei achar minha mãe de setenta e dois anos lá naquela imagem. E encontrei um futuro naquele passado da foto. Orgulhe-se, mocinha, Dona Vanda sobreviveu!
Que magia é esta a da genética? Como Deus é sábio! Estou lá na foto da minha mãe e, se procurar direitinho, encontro Antônio também. No olhar. Sim, ele está bem no olhar da minha mãe...
Ver o retrato aumentou minhas saudades. A saudade da mãe que não vejo há alguns dias, e a saudade desse tempo dela que passou. O viço, o rubor, a alegria e - ouso identificar no retrato também - a esperança, a fome de viver!
Passei por aqui para compartilhar este sentimento esquisito de ter o passado eternizado numa fotografia. Hoje, pelo visto, Deus reservou para mim um comovente (re)encontro comigo mesma: estou a garimpar meus ex-alunos no facebook e, enquanto o cursor me pede para aguardar, espero, com minha memória afetiva, ver o retrato de um menininho ou de uma menininha aparecer diante de mim. Mas o que há quando a tela abre são homens e mulheres libertos, felizes, adultos, donos de si. Cadê aquela criançada? Se eu quiser encontrá-la, terei que olhar pros retratos...
Deus criou o tempo e deu ao homem inteligência para criar a máquina fotográfica. Agora passado, presente e futuro estão todos ali. No mural com retratos que tenho aqui em casa, conto a evolução de Antônio: ele está na minha barriga na primeira foto. E com seis anos na última. Entre uma foto e outra, alguns tios que já faleceram. Eu deixo tudo lá, pra Antônio não se esquecer da sua família...
Há uma nostalgia fazendo-me companhia hoje. Graças a Deus! Vontade de ilustrar este texto com os retratos que tenho aqui em casa. Da menina que fui, do meu sobrinho quando nasceu, de Antônio quando começou a andar, dos meus pais na Lua-de-mel... Eu tiro milhões de fotos, quase como se quisesse que o tempo não passasse. Melhor pra Antônio, quando quiser contar a história para os meus netos.
Tenho um retrato de um pôr-do-sol na minha rua que jamais se repetirá. Porque a casa que fazia fundo pro cenário não tem mais as árvores que multiplicavam os raios amarelos na fumaça cinza. É isto: alguém havia posto fogo no lixo numa esquina, a fumaça atravessou os raios do sol e, daquele balé, surgiu a foto. Passei bem na hora, e não perdi a oportunidade.
Todas as vezes que vou a São Gonçalo saio de lá com a máquina carregada de fotos dos meus pais. Hoje Sr Walter está com setenta e sete anos e Dona Vanda com setenta e dois. Mas posam como se fosse foto de lambe-lambe. Respeito à foto. Postura ereta. Uma graça! Estarão eternos lá. No retrato e no meu coração.

sábado, 3 de março de 2012

O que foi que deu errado?

(Da minha vida profissional eu não tenho do que me queixar... Tá tudo bem, uma vez que foi o que escolhi fazer. Mas da minha vida pessoal... Caramba!)


Deu quase tudo certo: primeiro, eu estudei numa escola paroquial do município de São Gonçalo. Boa aluna, “dispensei” a primeira série, indo direto do jardim de infância para a segunda série, amparada pela Resolução 108. Pesou-me ter que garantir boas notas ao longo do ano letivo. Eu apenas havia ido para a primeira série sabendo ler. Mas a professora, tia Maria do Carmo, disse para a minha mãe que eu estava atrapalhando a aula lendo tudo o que ela escrevia no quadro. E encaminhou-me para a sala da tia Carmem Lúcia.
Quando eu terminei a quarta série tive que ir para outra escola. E estudei da quinta série ao primeiro ano do segundo grau – o “básico” – em outra escola pública também.
Fiz o primeiro ano lá porque o prefeito prometeu aos alunos que ofereceria àquelas turmas a formação geral até a conclusão do segundo grau. Não tendo cumprido a promessa, cedeu-nos bolsa de estudo integral para terminarmos os estudos em uma escola particular.
Nesta época eu tinha quatorze anos. Indecisa sobre o que estudar, ouvi da minha mãe uma pergunta que ajudou-me a decidir: “Você não vai trabalhar, não? Na sua idade eu já estava atrás do balcão da farmácia trabalhando...” Decidi cursar Formação de Professores para ter, logo, um emprego.
O prefeito da cidade quebrou a segunda promessa e em uma reunião com o diretor da escola soubemos que teríamos que pagar a mensalidade. Graças a Deus o diretor tinha sido meu professor, e empregou-me como auxiliar de classe numa turma de pré-escolar. Eu estudava pela manhã e trabalhava à tarde. E, no final do mês, a secretária da escola carimbava “ISENTO” no meu carnê. Profecia de mãe se cumpre!
Dali segui meu caminho. Depois que me formei professora não parei de trabalhar. Somente dezesseis anos depois é que ingressei na faculdade para fazer Pedagogia. Uma alegria passar para a Universidade Federal Fluminense! Professores excelentes, experiência maravilhosa!
Até ali eu segui o caminho exatamente como ensinaram meus pais: sem olhar para os lados, sem dar atenção a estranhos, sem confiar nas intenções dos meninos... E na faculdade conheci aquele que viria a ser o meu marido.
Eu me casei. Com vinte e seis anos. Acreditando que seria para sempre. Casei-me com um poeta, um rapaz extremamente inteligente. Nos conhecemos em agosto, nos casamos em abril. E não deu certo.
Cinco anos de um casamento que mais pareceram cinco anos de tentativas. Não deu mais. E chegou ao fim aquilo tudo que construí nas minhas crenças...
Foi muito difícil. Por mais que o amor acabe – ou nos mostre que nunca existiu de verdade – o processo de separação num casamento é doloroso demais! Dói fisicamente. É estranho...
Eu quis chorar a dor física e emocional que sentia, mas eu não tinha paz para isto. Eu morava muito próximo de minha família e, querendo fazer de tudo para ajudar, eles acabavam por invadir todos os meus espaços, e eu tinha que omitir sentimentos, engolir choros, essas coisas. Meu marido deixou minha casa em novembro, as aulas terminaram em dezembro e eu, de férias, passei janeiro todo curtindo a solidão (agora a um, mesmo) de uma casa vazia. Mas eu não podia sofrer, porque ninguém podia saber.
Deus foi, mais uma vez, misericordioso comigo: em janeiro mesmo fui chamada no concurso que havia feito para Iguaba Grande. E vim pra cá, de mochila nas costas, decidida a recomeçar, feliz por ter um canto pra sofrer por aqueles meses que passei representando. Quando cheguei aqui, trabalhava somente três dias na semana. Nos outros, eu chorava a minha dor. Chorei, até que ela passou.
Passa. As dores passam. Minha mãe sempre me disse isto. Mesmo quando eu inventava aquelas febres pra ela encostar a mão na minha testa. Mesmo quando eu não queria que passasse, pra mão dela ficar ali mais um pouquinho...
A dor passou. Eu consegui outro emprego para completar minha semana de trabalho. Parei de voltar pra São Gonçalo. Fiz da casa de veraneio dos meus pais a minha casa. Mudei o endereço das minhas contas, trouxe o resto das roupas, trouxe a geladeira, ganhei um filhotinho de pastor alemão, finquei âncora. Meu lar! Agora eu moro em Iguaba Grande.
Eu disse adeus ao passado e olhei para frente. Demorou um pouco e eu conheci o amor outra vez, quando já estava bem desacreditada dele... Mas, para resumir, novamente não deu certo.
Tem alguma coisa de errado por aqui, que eu ainda não descobri o que é. Mas vou vivendo, porque nada para pra me esperar. Eu sei contar direitinho sobre as coisas do trabalho, mas não sei explicar o meu coração. Olho-me no espelho – daquele jeito profundo que só a gente sabe quando se olha – perguntando-me o que foi que deu errado, mas a resposta não vem. Tento me lembrar se algum dia minha mãe profetizou também isto...
Antônio está aqui comigo. É o bom do meu lado mau. Olhando pra ele penso que meus tropeços já predeterminavam a sua chegada na minha vida. Sua presença contagiante em nossa casa (e na minha vida!) alenta minha alma. É como se eu sentisse fisicamente o perdão de Deus.
Nas coisas de estudo e de trabalho pelas quais passei tornei-me competente. Estou satisfeita com o resultado. Já não posso dizer o mesmo, infelizmente, sobre as minhas coisas de amor. Alguma coisa deu errado. Mas talvez seja pretensão minha desejar que tudo desse certo na minha vida. Será que com todo mundo é assim?
Seja como for, vou cumprindo o que ora me cabe: educar Antônio, ser-lhe mãe, no sentido mais amplo da palavra. E cuidar para que meus vícios não se sobreponham aos desejos dele. Preciso deixá-lo seguir um caminho diferente do meu ou também ele estará fadado a viver na solidão.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Plutão reprovou muita gente

(Ter assistido às palestras dos Professores Jair Passos e Vasco Moretto inspirou-me a compartilhar com vocês a minha opinião sobre avaliação, sobre escola...)


Quem vai indenizar a família de Giordano Bruno? Queimaram ele, depois que contestou a “verdade” de que o Sol girava em torno da Terra. Até que, quando já era um monte de cinzas, perceberam que a coisa era exatamente como ele dizia: a Terra é que girava em torno do Sol. Perceberam tarde demais, ele já havia recebido seu castigo.
Se ele estivesse na escola teria sido reprovado, certamente. Plutão deve ter reprovado muitas crianças que na hora da prova esqueceram-se dele. Tinham que decorar os nomes dos nove planetas. Plutão deve ter sido, por ser o último da fila, o mais esquecido. Muita gente perdeu o ano por causa de Plutão. Plutão era um planeta. Reprovou, reprovou, reprovou... Agora descobriram que Plutão não é planeta nenhum. Ufa! Menos um nome para Antônio decorar!... Quem vai indenizar as famílias que tiveram seus meninos reprovados (e desistentes, e evadidos...) por causa de Plutão?
Quando as aulas começam na escola cada professor toma o rumo da sala de aula com a sua pasta cheia de verdades nas mãos. Suas anotações para o dia de hoje (iguais às de ontem, iguais às de anteontem, iguais às dos anos passados) são incontestáveis: dois mais dois são quatro; são quatro as estações do ano; uma planta completa tem cinco partes; o Brasil tem cinco regiões;...
Há uns anos trabalhei numa escola de área rural. Repleta de vegetação nativa. Os meninos corriam e subiam nas árvores na hora do recreio. No dia da prova de Ciências, a pergunta óbvia: “Quais são as partes de uma planta completa?” Eu não sei se eles sabiam responder isto, mas eu sei que quando eles brincavam de pique na hora do recreio sabiam em que árvores podiam subir, porque algumas possuíam galhos que sustentavam seu peso, outras não. E era muito comum ver esses mesmos meninos alimentando-se das frutas que caíam das árvores próximas à escola, porque pelas folhas eles conheciam os frutos que viriam dali.
Mas a professora daqueles espertos meninos não queria saber disto, não. Ela queria saber quais são as partes de uma planta completa. E às vezes os meninos não sabiam isto e eram reprovados. Algumas muitas vezes isto acontecia.
Numa outra escola os alunos de sexto ano de escolaridade ficaram em recuperação na disciplina de História. Uma considerável quantidade de alunos. Alguns não resistiram à aula de recuperação (geralmente é uma só, mesmo) e foram reprovados. A professora fez apenas uma pergunta na prova: “Por que a antropóloga Niède Guidón  não acreditou na hipótese de Bering?” Os alunos que não souberam responder à pergunta tiveram que repetir o sexto ano de escolaridade. Como o sistema do meu município não previa a progressão parcial, os alunos viram pela segunda vez todo o conteúdo de sexto ano de todas as outras disciplinas. Um objetivo: aprender por que a antropóloga Niède Guidón não acreditou na hipótese de Bering. Caso contrário, o jeito seria repetir o ano pela segunda vez.
Eu não sei por que a antropóloga não acreditou na hipótese de Bering. Mas eu passei pelo sexto ano. Provavelmente meu professor, à época, esqueceu-se de me fazer esta pergunta tão importante! Ou até fez com que eu decorasse a frase, reproduzisse na prova e a esquecesse para todo o sempre.
Eu vi uma prova de Ciências em que a professora – uma daquelas que conta as horas para se aposentar – dá como certa uma resposta em que o aluno diz que o cérebro é o maior osso do corpo humano. Certa a resposta da prova, que também era de recuperação, foi aprovado o aluno. Cérebro é osso. E o maior do corpo humano. Quem discorda?
Segue a vida assim, os anos passam, e enquanto cada um batiza sua verdade alguém perde o ano por isso. E, no entanto, o mundo está aí, tal como é. Tal como Deus criou. Nada mudou depois que a Inquisição Romana queimou Bruno em 1600: o sol nos aparece como o vemos pela manhã e nos deixa à tarde. A planta completa tem cinco partes. E o homem chegou à América, vindo de um lado ou de outro, mesmo tendo brigado a Niède e o Bering. Que nos importou isto na vida que levamos hoje? Que nos importou isto na vida que levávamos tantos anos atrás?
Assisti a duas palestras ontem com educadores renomados e fiquei observando o sentimento - que chegava a aproximar-se de desespero - que lhes tomava o corpo num desejo explosivo de pedir ao professor que pare com essa prática de avaliar pelo irrelevante. Saltavam, quase implorando, tentando exaustivamente revelar ao professor que eles estão mais a frente vendo tudo o que está acontecendo, e tentando lhe dizer que não está acontecendo nada!
Paulo Freire deve ter sofrido a angústia de ter o tempo de vida findado sem saber se atingiu a todos os que pretendia... Foi assim também com Vinícius e Tom Jobim. E com Jesus. E eu, na minha reconhecida insignificância, quis vir aqui deixar também meu testemunho, ainda que desprezível diante do deles:
Não está acontecendo nada! Não há alegria, não há tesão, não há vontade. Ninguém quer ir pra escola, a não ser por motivos que dispensam a presença do professor. Não há objetivos, não há planejamento, ninguém mais se rejubila, se emociona...
As questões das provas – instrumentos principais, e às vezes únicos, de avaliação do aluno – dizem respeito ao que o professor sabe, desprezando qualquer possibilidade de o aluno revelar o seu conhecimento. Aqueles meninos lá da escola do início do meu texto sabiam dizer coisas maravilhosas sobre as plantas. Mas ninguém lhes perguntou, porque ninguém saberia lhes corrigir. Mais fácil perguntar a eles quantas partes tem uma planta completa.
Que verdades estamos ensinando hoje? Meu pai foi reprovado porque não escreveu amor e flor com acento circunflexo.
Recordo-me de uma aluna chamada Flávia que em 1996 foi reprovada na segunda série porque respondeu que a chuva vinha da terra, diante da pergunta da prova de recuperação de Ciências. Sua professora fez um grande “X” em sua resposta, deu errado, e escreveu ao lado: “A chuva vem das nuvens”. Para algumas comunidades a verdade da professora é a que vale. Ninguém contestou o resultado. Flávia apanhou um bocado em casa. E retornou à escola, no ano seguinte, para fazer a segunda série outra vez.