Hoje eu trouxe
muitos dos meninos para casa. Vieram no meu pensamento. Viajaram por quase
quarenta quilômetros comigo, me pedindo para estudar.
Às vezes me
sinto cansada. Os meninos me revigoram. Por incrível que pareça, viver os
problemas da escola me deixa feliz. Eles ainda mexem comigo, alteram meu humor,
me tiram o apetite. Isto é um bom sinal para quem teme chegar ao ponto de não
se abalar mais com as atrocidades que a escola comete. Escola, Educação,
Sistema Público, Sistema Privado. Nada pessoal, nada particular. É o todo, é
quase a vida!
Acontece que
defendo há décadas que a vida escolar das crianças deve fluir sem maiores
obstáculos, e que a Escola tem tudo a ver com isto. Jargão decorado, bonito. No
entanto, uma frase não move uma vida. E, de jargão em jargão, vamos eliminando
do nosso convívio as situações problemáticas que podemos eliminar, no intuito
de evitarmos aborrecimentos.
Eu estou
triste. Peço desculpas ao leitor se houver troca de letras neste texto, mas
quando escrevo triste, costumo escrever assim, com letras trocadas...
A foto
escolhida para ilustrar o texto de hoje é proposital. Pesquisando no Google,
certifiquei-me de que faz nove anos que o fato
aconteceu. Daí, certifiquei-me de que faz nove anos que quero escrever sobre
aquilo. Eis minha analogia:
O corredor,
Wanderley, o aluno da escola pública (penso que agora já dá para incluir alguns
casos de escola privada, também, infelizmente). Concentrado, obstinado,
esforçando-se para chegar a um lugar. Feliz por perceber-se já na reta final,
orgulhoso por avistar a linha de chegada, satisfeito por ver a torcida a seu
favor. Pensando em tantas coisas durante o percurso! Na família, no emprego,
nas contas a pagar...
Na
transversal do circuito, o “escocês”, a quem eu chamaria Escola. Vestido num uniforme
impecável, muito bem penteado. Escondido, capcioso, aguardando, sem que ninguém
se desse conta, a oportunidade de “dar o bote”. Não pensa muito, não reflete.
Seu objetivo é um só: retirar da competição – excluir! – aquele menino franzino
que destoava dos demais corredores. Aquele menino magrelo, aquele menino
obstinado demais.
Então, o
escocês o faz: com um empurrão, destrói o sonho. E ainda que resistente,
insistente, Wanderley pouco tem a fazer, depois que vê passar à sua frente seus
concorrentes que há minutos estavam tão longe! As pessoas mais próximas tentam
ajudá-lo a se recompor, mas Wanderley não consegue. Seu emocional já está todo
tomado pelas perguntas que faz a si mesmo a respeito da origem daquele homem.
Nada mais há que se faça. Nosso herói está expulso.
Nossa louca
escola – porque aquele “escocês” o era, certamente! – anda praticando esses
erros, mesmo depois de nove anos. E aquele choro meu, de desespero, de
angústia, de dor ao ver o menino brasileiro fora da maratona chega-me de
assalto quando trago para casa, nos meus pensamentos os meninos excluídos, por
causa escola, da maratona da vida.
Julgamento?
Não nos cabe. Saber se o menino vai adiante, se tem condições de concluir os
estudos, se prestará atenção nas aulas, se evadirá, se ocupará a vaga de outro
à toa...
Nas quatro
paredes que cercam uma escola não se pode ter pensamentos assim. Escolas –
sobretudo as públicas! – devem dizer “sim, há vagas!”, devem dizer “vem, eu lhe
acolho!”, devem sorrir, segurar a mão, apontar a linha de chegada, oferecer a
água na hora em que o corpo sedento tomba e esmorece. Mas eu olho para os
prédios, e tudo o que eu leio nos cartazes é “não”.
E tudo o que
pensei hoje, no caminho de casa, refazendo minha trajetória que iniciou com o
exercício da profissão de Professora em troca da isenção da mensalidade do
Curso Normal, tudo o que pensei recordando de que no meu primeiro ano de
Magistério, depois de formada, lecionei em troca de vales-transporte, tudo o
que pensei depois de chorar a queda de todos os Wanderleys que testemunho quase
diariamente, foi que ainda há esperança.
Minha
esperança mora no coração de Professores que enobrecem
a profissão. Mora naquele Professor que conhece o aluno pelo nome. Naquele
Professor que preenche a sala de aula com a sua presença, ainda que em suas
mãos carregue apenas giz e apagador. Minha esperança mora naquele Professor que
olha seu aluno nos olhos, que reconhece um dia atípico, uma dor, uma tristeza,
uma carência...
Ainda tenho
esperanças, embora me seja tão difícil ver um aluno deixar o balcão de uma
secretaria de escola diante da negativa de vaga. Porque, na verdade, o que me
instiga é saber o que o aluno foi buscar lá. Sinto necessidade de saber o que
eles ainda esperam daquele uniforme quase escocês!
Estou triste
e, confesso, confusa.
Mas queria
compartilhar com vocês a minha dor. Esta dor que me alegra, porque, como disse
no início, temo um dia não sentir. Há uma gente que não sente mais, nas nossas
escolas. Que não se aflige mais, que não se
importa mais. São pessoas para quem não fez a menor diferença o susto de
Wanderley diante do louco, lá.
Pode parecer
estranho, mas eu vim até aqui para curvar-me diante do Bom Professor (ou a
melhor expressão seria Verdadeiro Professor?). Esses poucos que teimam em
insistir, em ousar, em realizar o milagre da boa aula, do convívio saudável, do
servir-se de exemplo para uma juventude atordoada, de quem foram tirados os
limites por culpa não se sabe de quem. Bons Professores são a certeza de um
mundo melhor. São seres abençoados, em que Deus põe, eu diria, quase a mesma
confiança que deposita no ser humano cada vez que o choro de uma criança
anuncia a vida nova!
Um homem
cabisbaixo voltou para casa hoje sem escola para estudar. Um Professor voltou
para casa hoje orgulhoso da aula do dia, do rendimento – retorno! – da turma.
Um aluno voltou para casa hoje feliz, porque aprendeu que multiplicação não é
um monstro e, sim, uma forma mais rápida de se realizar somas sucessivas. Um
pai voltou para casa hoje ansioso por ver as notas no boletim do filho. A vida
é uma rotina atrás da outra, e segue – e acaba! – e independe da escola e de
seus inúmeros “escoceses” para acontecer.
Eu agradeço
a Deus por bons Professores existirem. São os instrumentos dEle para os
destinos que se desenham na infância, na juventude. São o último amparo, se
procurados na velhice.
Escola é
lugar de “sim”, de “vem”. E eu me orgulho daquele Professor que faz da estada
do seu aluno na Escola uma maratona onde se avista a linha de chegada, e se
consegue chegar lá.