Tenho cinquenta anos, e sou
professor. Escolha difícil, diante de uma família que esperava um filho médico
ou advogado.
Não sou médico, nem advogado. Mas
muitos dos meus alunos têm este registro em seus diplomas. Formei médicos,
advogados, engenheiros, arquitetos, filósofos, meteorologistas e, graças a
Deus, muitos, muitos outros professores!
Bordando minha história, os meninos
e meninas que passaram pelas escolas por onde também passei. Sou professor de
Matemática, foi difícil – sempre difícil! – convencê-los de que era possível
compreender a Matemática, apaixonar-se por ela. Eu consegui, em muitas das
vezes.
Com vinte e oito anos de magistério,
bato às portas da aposentadoria. Cansado fisicamente da lida, meu corpo já não responde
aos estímulos mais severos. Ainda vou trabalhar de bicicleta, ainda jogo uma “peladinha”
com a turma na hora do recreio, mas isto tem me deixado de molho nos fins de
semana. É que evito ir ao médico, temendo ter que ausentar-me das aulas, então,
concentro as dores para os sábados e domingos. Às vezes os sábados são letivos,
e a dor aumenta. Mas ainda está dando para aguentar.
O cansaço é, também, emocional.
Conviver com professores que já desistiram da profissão, mas não a abandonam,
me causa certa tensão. Preocupa-me o futuro dos meninos e meninas, que nenhuma
culpa têm daquela desistência, e sofrem-lhe as mazelas. Os professores deste
tipo que conheço saem de sala ao primeiro sinal de desordem, ou então gritam
desesperadamente em busca de um silêncio que não acontece. Eles não buscam
novas formas de ensinar, apenas repetem exaustivamente aquela única coisa que
sabem. Então, os meninos e as meninas que não entendem aquela forma de
comunicação vão se distanciando, porque tem sempre um colega ao lado – ao atrás,
ou à frente – com algo bem mais interessante dentro da mochila. Aí tudo se
dispersa como rio sem margem. Não há aprendizagem onde não há ensinamento.
Volto para casa emocionalmente cansado,
também, quando sou procurado por algum de meus alunos para uma conversa
particular. Graças a Deus, ainda sou referência para eles. A Orientadora
Educacional da escola não está lá todos os dias. E acontece algumas vezes de,
mesmo que ela esteja, eles preferirem desabafar comigo. Até mesmo as meninas me
procuram, buscando uma solução para os seus problemas ou uma palavra amiga.
Nessas horas eles me chamam de “tio”. Não tenho nada contra a expressão “tio”.
Eles não sabem se é ou não pejorativo. Usam-na com carinho, e eu gosto. Ontem
foi um dia desses. Dois alunos me procuraram após ter batido o sinal da saída.
Tinham cometido um furto num supermercado, e agora estavam temerosos porque
souberam que a câmera interna havia registrado e a polícia já havia sido
notificada do caso. Estavam à procura dos meninos. Nunca haviam feito isto
antes. Caíram “na pilha” de outros amigos e furtaram uns pacotes de biscoitos e
uns sabonetes...
Diante do meu primeiro conselho para
que revelassem o ocorrido a seus pais, a história de desgraça prolongada: um,
não tem pai nem mãe. É criado pelo avô, que o agride constantemente. O avô não
se locomove direito, passa o dia inteiro revezando entre cama e cadeira de
rodas. O outro mora com a mãe, que trabalha como diarista, não sabe quem é seu
pai. E, diante da forma como é criado (“para
ser alguém na vida”) teme decepcionar a mãe ao revelar o erro cometido. Os
dois meninos, nervosos, apavorados, choram o desespero que me toma de assalto,
também. Ontem cheguei a casa tarde da noite, embora tivesse lecionado só pela
manhã, tentando resolver a vida daqueles garotos. Acho que consegui. Acho que o
susto que levaram não os fará repetir a bobagem.
Minha vida é assim. Sou professor.
Eles sabem a Matemática, uns um pouco mais que outros, mas sabem o suficiente
para viverem. Para mim, bastaria que fosse assim. Mas assim como todo mundo
gosta quando encontra um médico que vai além das consultas e prescrições, ou um
arquiteto que entenda, para além das obras de reforma, seus desejos pessoais,
sou um professor que enxerga o aluno em sua essência, não só no que escreve nos
dias de prova.
Nunca considero notas de provas para
avaliar meus alunos. Um menino sob o estresse de ser reconhecido por uma câmera
numa ação infeliz de furto não poderia jamais sair-se bem num teste de
Matemática. Como não se sairia bem, também, a menina que suspeita estar
grávida, ou o menino que experimentou crack na noite anterior, ou mesmo o
menino que não conseguiu estudar porque virou concreto ajudando seu pai na
construção do patrão.
Eu sou professor, graças a Deus. Não
vi o melhor sorriso no rosto dos meus pais quando lhes informei da minha opção
no Vestibular. Mas vejo-lhes o brilho nos olhos quando viajo pra casa e conto
histórias do meu cotidiano. Como vejo o brilho nos olhos dos meus meninos e
meninas quando lhes conto a minha própria história de aluno de escola pública
que estudou muito, acreditou nos sonhos e chegou onde queria.
Meu salário não me dignifica. Luto
pela valorização da classe, enquanto trabalho nos três turnos para pagar a
prestação do carro e quitar a casa. Quero deixar algo seguro para meu neto, que
acabou de nascer e que leva meu nome. Quero que ele cresça e viva um tempo de
reconhecimento do trabalho que um professor que honra seu diploma tem. A ponto
de também valorizar seus professores em sala de aula. A ponto de ver seus
olhinhos brilharem quando eu lhe contar minhas histórias. A ponto de – quem sabe?
– querer, também, ser professor.
Eu vi o rosto desse professor em cada palavra escrita, cada pontuação do texto. Eu vi as cenas como aqueles que esperamos acontecer depois do Jornal Nacional, mas que emociona de verdade porque é a verdade, você é assim mesmo VERDADE! Bjs e obrigada pelo prazer dessa leitura que embora pareça melancólica é altamente reflexiva. Você realmente é especial para a Educação.
ResponderExcluirAh, Mariza... Obrigada! Estava com saudades de você por aqui! :)
ExcluirOlá! Que texto lindo!
ResponderExcluirObrigada por compartilhar!!
Um Abraço!
Bom sábado!
Obrigada, Vanessa!!! Bom sábado para nós!
ExcluirAhhh se todos pensassem assim... Sou estudante de Pedagogia e tenho orgulho disso. Talvez meu pais não tenham, ou tenham, rs! E também convivo "com professores que já desistiram da profissão, mas não a abandonam". O mais triste? Esses professores estão me formando :( Mas não é por isso que perco meu foco.
ResponderExcluirSou mais uma que acredita no poder da mudança por meio da educação!
Parabéns pelo texto!
Ahhh se todos pensassem assim como você, Camila! Rs. Muito obrigada pela contribuição!
Excluir"Minha vida é assim. Sou professor."
ResponderExcluirtexto perfeito.
quanta saudade do meu tempo de aluna e do inicio da minha carreira quando os professores brincavam c os seus alunos na hora do recreio.
momento de estarmos juntos, momentos preciosos....
como era gostoso!!!!!!!!!!!!!!
hoje os professores rezam pela hora do recreio p se livrar dos alunos p correrem p sala dos professores reclamar dos alunos, do salario ou do horario de coordenaçao.
uma tristeza!
fiz uma viagem no tempo...
mais uma vez - PARABENS!
Que honra ver você aqui, Mercedes!!! Muito obrigada pelo elogio, você sempre me emociona! :)
ExcluirJesus....Muito linda essa história... E obrigado por tanta dedicação ao nosso país!
ResponderExcluirEmocionada por saber que gostou! Obrigada, Jorge!!!
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