São vinte e quatro as horas que
ganhamos para viver o dia. O que fazemos com elas é de nossa total
responsabilidade. A cada amanhecer, novas vinte e quatro horas nos esperam. Depois
ganhamos outras e outras, e são tantas, sucessivas, que às vezes acreditamos
que não tem fim a vida que a gente leva.
Mas tem.
Viver é tomar sustos, sigo eu
filosofando, após algumas conclusões...
Meu pai está com setenta e nove anos.
Aquele mecânico, que chegara aos setenta e um anos de idade consertando tudo o
que havia no meu bilhetinho preso ao ímã da geladeira daqui de casa já recebeu,
depois disso, muitas vinte e quatro horas. Hoje já não faz mais tudo o que
preciso, então, respeitando seus limites, tento diminuir a lista, propondo-lhe
coisas mais fáceis, para que ele se sinta orgulhoso por continuar a resolver os
meus problemas.
Hoje o guarda-chuva de Antônio quebrou
– foi o primeiro dia que ele usou o guarda-chuva – e, prontamente, meu filho me
pediu que guardasse o objeto para que o vovô consertasse. Antônio, certamente,
tem lá a lista dele, também, de problemas para o vovô resolver.
Há uns dois anos meu pai reclama de dor
nas pernas. Uma sensação de cansaço, que julgávamos ser falta de circulação
sanguínea. Fomos a médicos, fizemos exames, mas nada ficou diagnosticado. Fugiu
de fisioterapia, negou hidroginástica, recusou-se a caminhar.
Na minha adolescência, meu pai me
mandava caminhar pela casa com livros na cabeça. Ele queria corrigir minha
postura. Naquele tempo ele era mais alto que eu. Um magrinho de belo porte, com
seus ombros esticados. Hoje Sr. Walter é bem mais baixo, e anda muito, muito
encolhidinho...
Minha presença por aqui hoje tem um
objetivo: chorar a vida que se leva. Porque vivo lá, dentro das escolas,
rodeada do que será o futuro, mas bastante temerosa do que teremos lá na
frente. Não sei se a vida que se leva hoje nos prepara para a hora em que o
corpo resolve se curvar.
Não, não há mais lista alguma na
geladeira. Ontem eu retirei a pequena lista de lá, depois que falei com minha
irmã ao telefone.
Por aqui pelo blog estou sempre
escrevendo sobre papai. Na primeira história, “Meu pai que a escola excluiu” (http://kentrenostodos.blogspot.com.br/2011/12/meu-pai-que-escola-excluiu-texto-de.html) eu revelei o paradoxo entre a sua inteligência e a
imperceptibilidade da escola. Na segunda, contada no texto “Lágrimas de
diamantes” (http://kentrenostodos.blogspot.com.br/2012/12/lagrimas-de-diamantes.html), eu compartilhei com vocês a emoção que senti ao ver meu
pai chorar.
Meu pai andou chorando nesses últimos
dias, e não foi pouco. Uma tristeza profunda que, meu coração me diz, advém do
fato de ver-se limitado nas condições físicas de realizar “aquilo tudo” de que
sempre foi capaz.
Procuramos um médico neurologista que
o avaliasse, e ontem minha irmã me falou ao telefone que, pela entrevista e
pelo que o médico pôde observar e concluir, muito provavelmente ele já tenha
sido vítima de um acidente vascular cerebral.
Nenhum bilhete na geladeira. O mundo
deu algumas voltas ao meu redor. O chão me faltou por alguns segundos. Mas
estou de volta. E preciso escrever sobre a vida que se leva, porque é esta a
minha intenção.
Se aconteceu o AVC, não percebemos.
Nenhuma dormência, nenhum desmaio, nenhuma queda de pressão, nenhum
esquecimento, nenhuma dificuldade para falar, nada aparente, nada sofrido. Se
aconteceu o AVC, foi durante a vida que se leva.
Estou dentro das escolas, teimosa que
sou, acreditando poder fazer alguma coisa pelos meninos e meninas que estão na
escola pública. Estou falando, escrevendo, gritando, chorando (ainda, graças a
Deus!). Estou vivendo a vida. Sou a Karla Pontes nas escolas, nas reuniões de
equipe de trabalho. Ultimamente, tenho sido a Karla Pontes administradora da
página “K entre nós”. Em casa, sou mãe (porque mãe não tem nome, não é? O nome
de mãe é mãe). Mãe do Antônio. Mãe, mãe, mãe, sem lembrar-me muito de mim. Lá
em São Gonçalo, sou Karla filha. Eis a vida que levo.
Um AVC mais contundente – seria a
melhor palavra? – e já não teria por aqui o velho Walter. E quando, isto?
Quando fosse à padaria, comprar pães? Quando fosse ao Banco, receber sua cruel
aposentadoria? No banho, sob o chuveiro? Assistindo à TV, nas horas daqueles
jogos de campeonatos de décadas passadas? Dormindo? Sentado à mesa para mais
uma refeição? Varrendo o quintal? Alimentando os cães e gatos de estimação?
Lavando o carro? Eis a vida que meu pai leva.
Meu pai leva essa vida quando os seus
olhos enrugados acordam para as vinte e quatro horas que lhe são concedidas.
Assim como nós: como eu, como cada um de vocês. Pretendemos as vinte e quatro
horas, mas não sabemos se um AVC – ou um assaltante, ou um aborrecimento com o
patrão, ou uma queda, ou uma bala perdida – vai interromper essa contagem.
Eu agradeço a Deus, ainda que não
saiba o que de fato aconteceu. Agradeço, porque hoje ele esteve do outro lado
da linha telefônica me dizendo “alô” quando eu liguei pra casa. E, diante do
futuro incerto que a escola oferece aos seus alunos, apesar de estarmos no
século XXI, choro. Porque pode ser que daqui a alguns anos Antônio resolva
escrever sobre a minha história, e pode ser que não haja boas notícias no final
dela. Pode ser que ele chore minha ausência por causa de um AVC ocorrido
durante um Conselho de Classe.
Nada muda. E esta é uma triste
realidade.
Diante da estaticidade da escola, as
doenças avançam, superam-se e levam nossos pais. Sr. Walter está lá, em São Gonçalo, graças a
Deus, mas não mais inteiro. Porque, uma vez limitado, sem condições de trocar o
pneu do carro, julga-se metade de homem. Seu velho corpo já não mais lhe
obedece. Pensa em caminhar na direção da direita, o cérebro inverte os
comandos, caminha para a esquerda. Pedi a minha irmã para deixá-lo vir para
Iguaba, para que eu pudesse acompanhá-lo, mas é impossível permitir que venha
sozinho. E foi o que sempre fez.
Em algumas lojas, já não se vende “à
prestação” para pessoas da idade dele. Meu pai nunca atrasou uma conta, sequer.
Sempre prezou pelo “nome limpo na praça”. E essa vida que a gente leva, insiste
em levar dentro das escolas, deturpando valores, reprovando por preconceito,
priorizando detalhes irrelevantes, deixa do lado de fora muitas outras vidas,
também.
Vontade, uma só: ir-me embora daqui.
Voltar para junto deles, prolongar o convívio de Antônio com aquela sabedoria
toda que está a cento e vinte quilômetros de distância. Mas a vida que eu levo
não me permite fazê-lo. Faltou-me pensar nisto anos atrás.
Por isso, por tudo isso, deixo aqui
mais uma história de família. Talvez alguém que esteja lendo este meu desabafo
vá pensar mais adiante, vá modificar sua vida, vá aproveitar melhor as vinte e
quatro horas. Vá olhar pra trás, vá olhar pra frente, vá desfazer, vá refazer.
Importa que seja logo. Porque não sabemos, verdadeiramente, quantas vinte e
quatro horas teremos para viver ao lado de quem a gente ama.