quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A vida que a gente leva


São vinte e quatro as horas que ganhamos para viver o dia. O que fazemos com elas é de nossa total responsabilidade. A cada amanhecer, novas vinte e quatro horas nos esperam. Depois ganhamos outras e outras, e são tantas, sucessivas, que às vezes acreditamos que não tem fim a vida que a gente leva.

Mas tem.

Viver é tomar sustos, sigo eu filosofando, após algumas conclusões...

Meu pai está com setenta e nove anos. Aquele mecânico, que chegara aos setenta e um anos de idade consertando tudo o que havia no meu bilhetinho preso ao ímã da geladeira daqui de casa já recebeu, depois disso, muitas vinte e quatro horas. Hoje já não faz mais tudo o que preciso, então, respeitando seus limites, tento diminuir a lista, propondo-lhe coisas mais fáceis, para que ele se sinta orgulhoso por continuar a resolver os meus problemas.

Hoje o guarda-chuva de Antônio quebrou – foi o primeiro dia que ele usou o guarda-chuva – e, prontamente, meu filho me pediu que guardasse o objeto para que o vovô consertasse. Antônio, certamente, tem lá a lista dele, também, de problemas para o vovô resolver.

Há uns dois anos meu pai reclama de dor nas pernas. Uma sensação de cansaço, que julgávamos ser falta de circulação sanguínea. Fomos a médicos, fizemos exames, mas nada ficou diagnosticado. Fugiu de fisioterapia, negou hidroginástica, recusou-se a caminhar.

Na minha adolescência, meu pai me mandava caminhar pela casa com livros na cabeça. Ele queria corrigir minha postura. Naquele tempo ele era mais alto que eu. Um magrinho de belo porte, com seus ombros esticados. Hoje Sr. Walter é bem mais baixo, e anda muito, muito encolhidinho...

Minha presença por aqui hoje tem um objetivo: chorar a vida que se leva. Porque vivo lá, dentro das escolas, rodeada do que será o futuro, mas bastante temerosa do que teremos lá na frente. Não sei se a vida que se leva hoje nos prepara para a hora em que o corpo resolve se curvar.

Não, não há mais lista alguma na geladeira. Ontem eu retirei a pequena lista de lá, depois que falei com minha irmã ao telefone.

Por aqui pelo blog estou sempre escrevendo sobre papai. Na primeira história, “Meu pai que a escola excluiu” (http://kentrenostodos.blogspot.com.br/2011/12/meu-pai-que-escola-excluiu-texto-de.html) eu revelei o paradoxo entre a sua inteligência e a imperceptibilidade da escola. Na segunda, contada no texto “Lágrimas de diamantes” (http://kentrenostodos.blogspot.com.br/2012/12/lagrimas-de-diamantes.html), eu compartilhei com vocês a emoção que senti ao ver meu pai chorar.

Meu pai andou chorando nesses últimos dias, e não foi pouco. Uma tristeza profunda que, meu coração me diz, advém do fato de ver-se limitado nas condições físicas de realizar “aquilo tudo” de que sempre foi capaz.

Procuramos um médico neurologista que o avaliasse, e ontem minha irmã me falou ao telefone que, pela entrevista e pelo que o médico pôde observar e concluir, muito provavelmente ele já tenha sido vítima de um acidente vascular cerebral.

Nenhum bilhete na geladeira. O mundo deu algumas voltas ao meu redor. O chão me faltou por alguns segundos. Mas estou de volta. E preciso escrever sobre a vida que se leva, porque é esta a minha intenção.

Se aconteceu o AVC, não percebemos. Nenhuma dormência, nenhum desmaio, nenhuma queda de pressão, nenhum esquecimento, nenhuma dificuldade para falar, nada aparente, nada sofrido. Se aconteceu o AVC, foi durante a vida que se leva.

Estou dentro das escolas, teimosa que sou, acreditando poder fazer alguma coisa pelos meninos e meninas que estão na escola pública. Estou falando, escrevendo, gritando, chorando (ainda, graças a Deus!). Estou vivendo a vida. Sou a Karla Pontes nas escolas, nas reuniões de equipe de trabalho. Ultimamente, tenho sido a Karla Pontes administradora da página “K entre nós”. Em casa, sou mãe (porque mãe não tem nome, não é? O nome de mãe é mãe). Mãe do Antônio. Mãe, mãe, mãe, sem lembrar-me muito de mim. Lá em São Gonçalo, sou Karla filha. Eis a vida que levo.

Um AVC mais contundente – seria a melhor palavra? – e já não teria por aqui o velho Walter. E quando, isto? Quando fosse à padaria, comprar pães? Quando fosse ao Banco, receber sua cruel aposentadoria? No banho, sob o chuveiro? Assistindo à TV, nas horas daqueles jogos de campeonatos de décadas passadas? Dormindo? Sentado à mesa para mais uma refeição? Varrendo o quintal? Alimentando os cães e gatos de estimação? Lavando o carro? Eis a vida que meu pai leva.

Meu pai leva essa vida quando os seus olhos enrugados acordam para as vinte e quatro horas que lhe são concedidas. Assim como nós: como eu, como cada um de vocês. Pretendemos as vinte e quatro horas, mas não sabemos se um AVC – ou um assaltante, ou um aborrecimento com o patrão, ou uma queda, ou uma bala perdida – vai interromper essa contagem.

Eu agradeço a Deus, ainda que não saiba o que de fato aconteceu. Agradeço, porque hoje ele esteve do outro lado da linha telefônica me dizendo “alô” quando eu liguei pra casa. E, diante do futuro incerto que a escola oferece aos seus alunos, apesar de estarmos no século XXI, choro. Porque pode ser que daqui a alguns anos Antônio resolva escrever sobre a minha história, e pode ser que não haja boas notícias no final dela. Pode ser que ele chore minha ausência por causa de um AVC ocorrido durante um Conselho de Classe.

Nada muda. E esta é uma triste realidade.

Diante da estaticidade da escola, as doenças avançam, superam-se e levam nossos pais.  Sr. Walter está lá, em São Gonçalo, graças a Deus, mas não mais inteiro. Porque, uma vez limitado, sem condições de trocar o pneu do carro, julga-se metade de homem. Seu velho corpo já não mais lhe obedece. Pensa em caminhar na direção da direita, o cérebro inverte os comandos, caminha para a esquerda. Pedi a minha irmã para deixá-lo vir para Iguaba, para que eu pudesse acompanhá-lo, mas é impossível permitir que venha sozinho. E foi o que sempre fez.

Em algumas lojas, já não se vende “à prestação” para pessoas da idade dele. Meu pai nunca atrasou uma conta, sequer. Sempre prezou pelo “nome limpo na praça”. E essa vida que a gente leva, insiste em levar dentro das escolas, deturpando valores, reprovando por preconceito, priorizando detalhes irrelevantes, deixa do lado de fora muitas outras vidas, também.

Vontade, uma só: ir-me embora daqui. Voltar para junto deles, prolongar o convívio de Antônio com aquela sabedoria toda que está a cento e vinte quilômetros de distância. Mas a vida que eu levo não me permite fazê-lo. Faltou-me pensar nisto anos atrás.


Por isso, por tudo isso, deixo aqui mais uma história de família. Talvez alguém que esteja lendo este meu desabafo vá pensar mais adiante, vá modificar sua vida, vá aproveitar melhor as vinte e quatro horas. Vá olhar pra trás, vá olhar pra frente, vá desfazer, vá refazer. Importa que seja logo. Porque não sabemos, verdadeiramente, quantas vinte e quatro horas teremos para viver ao lado de quem a gente ama.

4 comentários:

  1. Terminei de ler e a primeira coisa que pensei foi em enviar este texto para o meu filho de 15 anos ler. Farei isto agora.
    Parabéns por mais este belo texto cheio de vida.

    Anderson Ceia.

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  2. Amiga, você me fez chorar! Como vivi cada frase, cada palavra, parando e revendo as minhas experiências vividas. Lembrei do Meu Amor, das minhas limitações devido aos problemas na coluna,,,Enfim refleti muito sobre pessoas e momentos. Deus está no controle, você é guerreira e logo seu Papai estará recuperado e retornando as atividades habituais.

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