Não era
nenhum dia diferente. Deixei Antônio na casa da moça que toma conta dele,
peguei a estrada cruzando o cinto de segurança no peito, e me ajeitando no
banco. Troquei os óculos pelos de sol e, fazendo o sinal da cruz, pedi a Deus
que me levasse e me trouxesse de volta pra casa.
É
engraçado, porque sempre na hora em “me benzo” estou passando, justamente, pelo
posto da Polícia Militar. Qualquer dia um policial mais atento vai me fazer
parar o carro e me perguntar por que tenho tanto medo de passar em frente ao
posto.
Depois
que obedeci ao primeiro farol de 50 km acelerei, passei a quinta marcha e
apertei o play: Legião Urbana 2, volume 35, batidinhas ritmadas no volante, abri
as janelas do carro e Renato Russo me fez companhia até Cabo Frio. “A insegurança não me ataca quando erro”.
Eu segui
cantando, voz alta, vento na garganta. Quando chega a sexta-feira já não me
importo tanto com a cabeleira despenteada pelo vento na janela do carro. Meu cabelo
já é despenteado por natureza, pouca diferença faz se fecho ou abro as janelas.
Hoje fez uma manhã linda, impossível não sentir o dia! Sou “barco a motor” e nem sonho “insistir em usar os remos”... Vambora!
A vida é
linda, e urge!
Eu fiz a
viagem pensando em Renato. Que saudade! Que falta eu sinto dele! Como pôde ter isso
embora assim, e ter-nos deixado aqui, órfãos das suas palavras, da sua poesia,
da sua ode à juventude?! Quem canta, hoje, a felicidade do amor, de estar-se
apaixonado melhor do que ele? Quem não sente o coração vibrando quando ouve,
depois das batidas deliciosas das cordas do violão, o trecho “Tenho andado distraído, impaciente e indeciso.
E ainda estou confuso, só que agora é diferente: estou tão tranquilo e tão
contente!”? É como se sentíssemos o amor naquela hora, parece que nos
apaixonamos de novo (e de novo, e de novo), cada vez que ouvimos a música.
Aquela alegria da certeza após a dúvida: é amor! A sabedoria de dizer que “Já não sou mais tão criança a ponto de saber
tudo”... Ah, Renato, por que você
fez isto com a gente?
Hoje os
jovens estão lá nas ruas, com um movimento bonito, pacífico, pedindo justiça
num país onde um símbolo de justiça cega confunde os interessados. Há uma gente
lá fora levando tiros de borracha. Uma gente que nem lhe conheceu, Renato! Eu
sinto tanto porque você não está ao lado deles, cantando suas canções! E, no
entanto, viajo pasma, porque escuto você cantar (e que voz!) e sinto como se
você tivesse acabado de compor a sua canção.
Na faixa
três, “a” música: Acrilic on Canvas. E um pensamento nostálgico – uma saudade! –
me toma o coração de assalto. Eu lembro como se fosse hoje que em 1986 fui
testemunha de uma história de amor entre dois jovens que cursavam Belas Artes.
Os dois, seus fãs. O menino, aprendendo a tocar violão, carregava para cima e
para baixo as revistinhas com cifras das suas músicas. A menina, metida a
cantora, combinava os acordes com o namorado. Foi assim, até que o namoro
terminou. E a dor do fim foi gritada por você, Renato, no final da música feita
para o entendimento de quem sabe de Artes. Acho que nem eu acreditaria na
coincidência dos fatos, não tivesse eu mesma acompanhado aquilo tudo!
O céu
azul de Cabo Frio, a despeito da cor que tem o céu de qualquer cidade vizinha
traz a alegria: eu vivo! Eu respiro, eu sou perfeita, eu sou saudável, eu vejo,
eu ouço! Dirijo no ritmo de Eduardo, atropelando os pensamentos, apaixonado por
Mônica, sem saber o que fazer com aquele amor por aquela mulher tão poderosa, “nada
a ver” com ele. E penso nos meus amores – cada tipo! – e concordo com você,
mais uma vez: “Mesmo com tudo diferente,
veio mesmo de repente, uma vontade de se ver”.
Aquela
sensação de amar, maravilhosa, inexplicável, ganhou um defensor, um
representante. E tudo aquilo que era difícil para os jovens dizerem foi dito
nos discos, saiu da sua boca, foi cantado e dançado nos bares, clubes,
festinhas...
Hoje,
viajando, ouvindo você cantar, pensando nas cenas das manifestações no Brasil, alimentei-me
de “Tempo Perdido”. E basta que
balbuciemos suas palavras, basta que reflitemos um pouco sobre elas, e já nos
dá vontade de viver mais, viver melhor, viver com força: “Somos tão jovens!” Ainda dá tempo de tanto! Impossível não lembrar
de você dançando ao final da canção, num balé a que se podia chamar VIDA, num
clamor para que prestássemos reverência ao dia que amanhece, e que
observássemos “o sol da manhã tão cinza”...
Por onde anda você, Renato?
A música
que segue, a faixa sete, “Metrópole”,
foi composta ontem, me parece. Não é possível que o descaso com a saúde pública
esteja tão presente depois de tanto tempo.
O tom
debochado – seu companheiro – na outra canção pede que se “faça do bom senso a nova ordem”. Eu ouço, contextualizo, rio. “Não deixe a guerra começar”. Será que
você cantava para 2013, Renato? “Pense só
um pouco, não há nada de novo. Você vive insatisfeito e não confia em ninguém.
E não acredita em nada, e agora é só cansaço e falta de vontade, mas faça do
bom senso a nova ordem”.
Um filme
passa na minha cabeça, enquanto o violão o acompanha em “Música Urbana 2”. Estou já quase chegando à escola. Lá, as crianças
também ainda aprendem a repetir a “música” que vomitam os PMs armados, as
tropas de choque, os viciados, as antenas de TV, enquanto nascem mais algumas
crianças. É 2013, faz mais de vinte anos que você compôs a música. Como pode
ter sido assim?
“Às vezes parecia que de tanto acreditar em
tudo o que achávamos tão certo teríamos o mundo inteiro e até um pouco mais,
faríamos florestas nos desertos e diamantes de pedaços de vidro... Até chegar o
dia em que tentamos ter demais vendendo fácil o que não tinha preço”...
“Nosso dia vai chegar, teremos nossa vez, não
é pedir demais, quero justiça... Quero trabalho honesto em vez de escravidão...
O céu já foi azul, mas agora é cinza, e o que era verde aqui já não existe mais”...
“Quem me dera ao menos uma vez ter de volta
todo o ouro que entreguei a quem conseguiu me convenceu que era prova de
amizade se alguém levasse embora até o que eu não tinha”...
“O que aconteceu ainda está por vir”. Será que esta frase define sua aparição por
aqui, Renato? Será que isto explica essa vida intensa que você levou, a ponto
de mandar todos os recados às gerações futuras, às pessoas que não conviveriam
mais com você?
Que
mistério será este, Renato, de ouvir você cantar para a juventude de hoje?
Que
falta sinto de você, Renato! Que pena, que perda foi, para nós, a sua partida
daqui.
Cheguei
bem à escola, graças a Deus. Renovada de uma esperança que você depositou em
mim. Trabalhei bastante e, quando voltei para casa, na estrada, um sol
quentinho batia no vidro dianteiro e aquecia o meu coração. Uma sensação que
ainda não havia vivido! Você cantava outra vez, e desta vez parecia ainda
melhor!
E eu
pedi a Deus que o abençoe.
Saudades
sempre!
Ah!!! E eu tenho saudades de um Renato que eu nem conheci direito!
ResponderExcluirAMEI seu texto, Tia Karla! E cantei todas os trechos que você postou enquanto lia!
:*
Lívia
Obrigada, minha querida! É uma saudade grande, e fico triste por pensar que a geração de vocês não pôde conhecê-lo... Emocionada pela visita! Bjs.
ExcluirK entre nós,que texto...mais um dos ótimos e melhor quando me vejo compartilhando afetos com vc!Eu igualmente amo Renato,e tive o prazer de ver meu Marcello deliciando-se ao ouvi-lo e até me presenteando com um LP da Legião.Sim,eu gostava de ouvir meus LPs,qdo morava por aí...e como chorei ao saber de sua partida...valeu!!!
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