segunda-feira, 16 de junho de 2014

Quando tem que acontecer



Só conheciam as vozes, um do outro. Uma ligação por engano – ele para a casa dela – fez com que os dois se ouvissem. E gostaram do que ouviram.

Ele realmente se enganou, desacostumado que estava dessas ligações em telefone fixo. Precisou atender a um pedido de retorno na secretária eletrônica. Pôs números a mais? Trocou pares por ímpares? Foram números a menos? Não sabe. Já não quer mais saber. Ela atendeu, e pronto.

Ela ainda pede desculpas pela forma rude com a qual atendeu à chamada dele: “O que é, agora?”, disse, com tom firme, pensando ser, novamente, ligação de outra pessoa. Ele prontamente desculpou-se, identificou-se e, tendo percebido o equívoco, sugeriu desligar o telefone. Ela, envergonhada, desculpou-se (ali foi a primeira vez) e sorriu. Ele retribuiu o sorriso. Pediu que se acalmasse. E, quando olharam o relógio, estavam conversando fazia alguns minutos!

Era noite. Desligados os aparelhos, os dois, simultaneamente, respiraram, sorriram de si mesmos, estranharam o acontecimento, levantaram-se do sofá e, enquanto jantavam o que havia no micro-ondas, tentavam imaginar a figura do outro da voz bonita...

Mas o pensamento não os deixou à mesa da cozinha. Há muito não conversavam com alguém tão agradável. Quanta coincidência! Que coisa mais esquisita! E, duvidosos – e estranhamente alegres – adormeceram em suas camas grandes demais para o tamanho de sua solidão.

Falaram-se durante toda a semana. Sempre no mesmo horário: às 20h15min, aquele mesmo horário da primeira ligação. Mas já não se tratava de engano algum: Era Carlos que ligava para Ana. Ou Ana, que surpreendia Carlos, discando primeiro.

Com quantos anos de idade se se apaixona? Sim, aquele amor bobo, de tremer o corpo ao ouvir um “alô” (como era costume dele) ou um “pronto” (como era costume dela)? Carlos já havia passado dos cinquenta anos. Ana tinha exatamente quarenta e seis. Ao final daquela semana, tendo sonhado, os dois, com as possibilidades do que seria o outro, tendo ouvido no rádio do carro as músicas que o outro sugerira, tendo perdido a hora no banho, nos sonhos, no café, à mesa da cozinha, no sofá depois de terminada a conversa, começaram a pensar nisto: em estarem apaixonados, um pelo outro. Coisa boa!

As conversas foram, pouco a pouco, tomando consistência: Carlos começou a confessar a ela das vezes em que o café esfriava sobre a mesa, das distrações ao volante – que perigo! – da sua curiosidade em saber como ela era. Ana retribuía-lhe o carinho da confissão: revelou pensar muito nele, também. Disse que acordava e dormia ao som da sua música preferida. Carlos sugeriu, então, um encontro.

Do outro lado da linha, uma Ana muda. Fingiu ter caído a ligação. Colocou o fone no gancho: “ele quer me conhecer”, pensou.

Ana já conhecia bastante de Carlos. Sabia que ele malhava na mesma academia de uma amiga dela (eles moravam a trinta quilômetros de distância, um do outro), que cuidava do corpo, que se alimentava bem. Carlos parecia ser, verdadeiramente, um homem bonito, elegante. Ela já havia dito a ele que não ligava para essas coisas, que estava acima do peso, que era descuidada em sua alimentação. E, diante do convite para conhecerem-se de fato, titubeou.

Até que ouviu o alarme de recado na secretária eletrônica. Era um recado dele, de Carlos: “Ana, quero o encontro, porque estou apaixonado por você. Mas respeito sua decisão. Durma com Deus.”

Ana afogou-se no meio das almofadas do sofá da sala. Chegou a hora de vê-lo de perto, de sentir seu cheiro. Ria, roía as unhas, olhava-se no espelho. Não, aquele não era o século vinte e um. Não, aquela história... Se contasse, ninguém acreditaria! Beliscou-se, com infantilidade: estava viva. Sim, estava viva, estava apaixonada – completamente apaixonada – e era correspondida! Dentro de casa, na pequena sala onde só cabia o sofá e a mesinha do telefone (para que mais?), pôde ter quinze anos outra vez: fechou os olhos e arriscou abraçar Carlos. E beijou-lhe o rosto, ainda que sua intenção fosse outra. Até que o apito da chaleira a acordou daquele sonho, que estava mais para plano de ação. Foi para a cozinha, preparou e tomou seu chá preferido, ajeitou-se na cama e dormiu.

Manhã de quinta-feira. Ana levantou-se num pulo só. E fez as contas do tempo que restava para ter Carlos ao telefone, novamente. Já não quer mais dominar-se: quer o encontro. Quer sentir o perfume de Carlos e tentar adivinhar qual é (Ana é boa nisto).

Carlos olhava-se no espelho, duvidoso entre fazer ou não a barba. Olhava os dois vidros de perfume sobre a bancada e decidia qual usar no sábado. Tentava imaginar a roupa que Ana usaria para o encontro, certo de que ela diria “sim”, que aceitaria o convite. Olhou o relógio e fez as contas do tempo que restava para ter Ana ao telefone.

O dia e a tarde se passaram arrastadamente: cada minuto contado, desatenção total no que se tinha que fazer aquele dia. Troco esquecido no jornaleiro da banca perto da casa dele, e no restaurante onde ela almoça. Quem lembraria? Quem estaria pensando noutra coisa, senão um no outro?

Carlos, a caminho dos cinquenta e um anos de idade, é um menino nervoso, ansioso e inseguro. Ana, aos quarenta e seis, está com taquicardia. Amor!

Não preciso dizer que às 20h15min o telefone dos dois dava ocupado. Ela resolveu esperar um pouco, e foi só colocar no gancho, que tocou. Ela disse “pronto!”, ele disse “oi!”, ela respondeu “onde, e a que horas?”... Marcado o encontro, então, para a noite daquele sábado.

A sexta-feira não existiu. Haviam combinado de não se falarem aquele dia. Emoção acumulada – propositadamente? – para o momento de estarem pessoalmente um com o outro. Ana nem se lembra se trabalhou, aquele dia. Não lembra o que vestiu, o que lanchou, que chá tomou antes de ir dormir. Carlos não sabe com quantas pessoas esteve. Só se lembra de uns berros de uns motoristas nuns carros próximos ao seu, no trajeto de ida e volta para casa. Acha que fez algumas “barbeiragens”, perfeitamente perdoáveis, bem sabemos.

Quando Ana chegou ao restaurante, Carlos havia reservado a mesa: próxima da varanda, de onde se podia ver, ainda, o sol se pondo. O que Ana viu foi meio luz, meio Carlos. Ana gostou do que viu.

Percebendo Ana se aproximar da mesa, Carlos viu meio luz, meio Ana. E Carlos gostou do que viu.

Aquele sol se pondo fez a interseção do encontro dos corpos do casal apaixonado. E pôs-se a tempo, para que a lua viesse, e terminasse o serviço de embalar-lhes a noite. Carlos era, realmente, um belo homem: alto, esguio, de ombros retos e mãos grandes. Ana estava ainda mais bonita – porque feliz – com o novo corte de cabelo que havia experimentado.

Olhando Ana a falar nervosamente, Carlos não a interrompia. Naturalmente homem, reparava-lhe as curvas. Sim, Ana estava acima do peso. E ele nunca tinha estado com uma mulher tão interessante e bela! Podia fechar os olhos, já. Já a tinha decorado: linda, Ana! Ela falava, enquanto Carlos agradecia a Deus por ter esperado por ela.

Carlos falava pouco. Ana já lhe adivinhara o perfume. Ria em pensamentos. E agradecia a Deus por estar diante daquilo tudo que ela sempre desejou ter, bem diante dos seus olhos. Agradecia por ter esperado por ele.

Quando tem que acontecer, acontece. Só conheciam as vozes, um do outro. Agora, estavam ali. A lua perdeu a hora, velando os dois. O céu movimentou-se, para que o sol tomasse o seu trono de rei, novamente. O garçom fez uns barulhos estranhos, para que aqueles dois percebessem que o restaurante estava fechando. Já era domingo. Sorriram para o garçom, Carlos pagou a conta. Era hora de cada um ir para a sua casa e esperar o telefone tocar, às 20h15min.

7 comentários:

  1. Sem palavras de tanta emoção. Eu aqui aos meus 56 anos sonho sempre com um romance assim. Sou casada e bem casada, falo de sonhar com essa paixão, com esse romantismo, com esse delírio que você descreveu, ah!! se sonho.....Você tem o poder das palavras , o dom dos sentimentos, você é sentimento puro por isso escreve tão bem. Parabéns Karla Pontes, lindo e emocionante história, uma história que pode acontecer com qualquer um a qualquer momento. Penso que você deveria nos presentear com um livro, estarei na noite de autógrafo. Beijos minha querida!!!!

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  2. Uma docura de conto! Sensível e encantador!
    Parabéns, Karla Pontes!

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  3. Minha amiga Karla pontes, que exatamente daqui a 1 ano, quando vc for comemorar seu niver novamente que seja em uma noite de autógrafos.....até lá amiga!!!

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