quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O tempo e os sentidos

(Pra quem exercita o uso dos sentidos, o tempo é um Presente!)


Eu tinha dez anos. Já faz algum tempo. E, no entanto, ainda sinto os cheiros das coisas de quando era muito, muito pequena. Cheiro do pão com ovo que levava na pasta da escola para a merenda. Cheiro do plástico com que minha mãe encapava meus cadernos. O plástico xadrez verde, com algumas margaridas. Eu sinto o cheiro da madeira velha sobre a qual dispunha o material da escola quando começava a aula.
Depois as carteiras passaram a ser de fórmica, e eu lembro dos riscos feitos a estilete pelos alunos: seus nomes, suas “colas” para o dia da prova, seus recadinhos de amor, os corações cravados com as iniciais dos nomes dos namorados ou pretendentes...
Se me curvar sobre esta mesa onde estou agora, posso repetir a ação de baixar a cabeça, cruzar os braços e esperar o sinal da saída tocar. E lembro das brincadeirinhas que fazia com os colegas da sala por baixo dos braços dobrados, sem que a professora visse.
Lembro das cores das listras da tampa do meu estojo de madeira. A tampa corrediça listrada em cinza, preto e vermelho. Eu abria tanto aquela tampa!... Nunca soube onde ela ia parar depois que entrava totalmente pelo corpo do estojo...
Eu tinha uns cadernos do MEC. Minha mãe comprava sempre num depósito, saía bem mais barato. Eram uns pacotes com 10. Capas verdes com as iniciais do Ministério da Educação e Cultura.
Meus gostos estão todos aqui comigo, agora: o do Mineirinho da garrafa pequena que eu comprava na cantina da escola quando meu pai podia mandar o dinheiro pra isto. E juro que lembro detalhadamente do gosto do Nescau que bebia na hora do recreio no Jardim de Infância. Ficava meio ruim, porque o chocolate descia e nem sempre eu conseguia misturá-lo direito.
Que tempo é este que passa – tanto e tão rápido! – mas que não nos deixa esquecer sensações, gostos, cheiros...? O tempo é, também, um presente de Deus.
Sinto ainda, como se fosse hoje, os puxões da minha mãe nos meus cabelos quando fazia a “Maria Chiquinha”. E ouço ricamente o bater da lata de Neocid na minha cabeça quando fui tomada pelos piolhos. Há quanto tempo isto aconteceu? Trinta e poucos anos?!
Meu pai um dia chegou em casa fora do horário de rotina. Entrou, abriu a geladeira vermelha, baixou o volume do rádio do qual minha mãe ouvia o programa “Bom dia” com Aroldo de Andrade, tomou um copo d’água e ficou calado, enquanto minha mãe escolhia o arroz do almoço. Ela estranhou a expressão no rosto dele e disse: “Mamãe morreu, né?” Ele balançou afirmativamente a cabeça. Eu estava sentada, ajudando a minha mãe. Eu tinha onze anos. Ela chorou, ainda escolhendo o arroz. Choro solitário, calado, contido, conformado, silencioso. Talvez até hoje eu saiba refazer esta cena quantas vezes seja possível, da mesma forma como ela se deu.
Eu fiz natação com uns oito anos, mais ou menos. E jamais esqueço de duas coisas que me marcaram nesta época: A primeira, as folhas dos castigos em que minha mãe fazia eu e minha irmã escrevermos cinquenta vezes a frase “Não devo quebrar pratos quando lavar a louça.”, quando isto acontecia lá em casa. Eu me recordo das texturas dos muros onde parávamos para pôr a folha e preenchermos algumas linhas do castigo. Lembro - e é como se sentisse agora, na palma das mãos - a aspereza de alguns deles, que quase rasgavam as folhas.
A segunda lembrança da época das aulas de natação é a do professor me atirando na piscina de três metros de altura e afastando as raias de mim, quando eu tentava alcançá-las. Ele quis me ensinar a nadar assim. Eu lembro do azul que via quando abria os olhos, lembro do corpo dele embaixo da água e de ouvir as vozes de uma senhora gritando pra ele me tirar dali.
Tudo isto não se foi quando o tempo passou. Não se foram as dores, como não se foram os amores. Minha mãe ainda chora a morte de minha avó e ainda ama o meu pai.
Deus, em sua perfeição, nos presenteou com nossos sentidos. São eles que eternizam o tempo. É através dos nossos sentidos que entramos em comunhão com Deus.
Hoje tive a experiência de ouvir a voz de uma pessoa, depois de trinta anos. Eu não a vi. Só ouvi. Ela cantava uma canção. Exercitei meus ouvidos. Fechei meus olhos, tomada pela emoção do reencontro. E em menos de três minutos eu tinha novamente treze anos de idade. Eu estava no colégio, estava de jaleco azul, estava brincando de queimada na hora do recreio...
Obrigada, meu Deus! Porque fui feliz por três minutos! Porque tive treze anos por três minutos!
Agora entendo a alegria dos meus pais quando reencontram os amigos do tempo em que eram jovens... Agora entendo a alegria com que alguém experimenta amoras, se eram essas as frutas do quintal de casa quando criança... Agora entendo porque as pessoas se abraçam para matar a saudade... Entendo porque o cheiro do pão com ovo me faz tão bem...
De nada adianta passar a vida sem aguçar os sentidos. Isto é dar valor ao tempo, isto é respeitar a história que se escreve. Um dia tudo isso vai passar. Antônio receberá a notícia da minha morte. Preciso contar pra ele que viver a vida é bom, em todos os seus sentidos!

6 comentários:

  1. Amiga
    Quanta inspiração! Você me fez voltar no tempo...como diz o ditado: recordar o passado é viver duas vezes...Minha infância, meus amores, minhas travessuras...delícia! Beijos

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    1. Amiga
      Se foi uma experiência boa pra você, valeu a pena ter escrito. Beijos.

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  2. Maravilhosamente cartático!!!! Não sei nem se essa palavra existe mas, esse texto está digno de uma sala de análise. Não precisamos de terapias quando lemos esse texto. Recordar é viver, recordar com essa sutileza nas palavras nos faz viajar junto. Tenha certeza que agucei meus sentidos e busquei meus cheiros, minhas visões, minhas audições, meus toques. Você foi extremamente bondosa com seus leitores. Obrigada pela leitura, obrigada pela sua sabedoria ao buscar lá do fundo das nossas almas, nossas emoções.

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    1. Só quis compartilhar o exercício que Deus me permitiu fazer dia desses. Obrigada, Mariza!

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  3. É amiga Tb agucei meus sentidos:
    1º - Refresco de grosselha era tudo na minha infância...rsrsrs
    2º - Merenda da escola - amava quando chegava quarta-feira – peixe com arroz e goiabada com queijo....rsrsrsr
    3º - Depois de alguns anos veio o Mineirinho no recreio da escola, como disse quando se tinha dim dim....rsrsr
    4º - Bolo de aipim que mamãe fazia aí que cheirinho gostoso.....
    5º - Natal minha vovó fazia uma batida de jenipapo, claro que bebíamos escondidos né...rsrsr
    São tantas lembranças tantas emoções....Parabéns mais uma vez amiga Karla Pontes.

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    1. Que bom, Nícia! Que bom que o texto lhe trouxe essas memórias!!!
      Coisa boa viver, não é?
      Obrigada!

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