terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quem matou a menina?

(Quem matou Eloá? Eu tô sentada no banco dos réus, também.)


O rapaz a sequestra atormentado por um sentimento que julga ser paixão. Num daqueles momentos inerentes à adolescência em que as coisas se confundem e, dentro de um corpo oco, o mal consegue ser mais forte que o bem: o ciúme impera sobre todos os demais sentidos, a solidão dói fisicamente e a solução é apoderar-se daquilo que supõe amar.
Ele sequestra a menina, mas já não sabe o que fazer com ela. Perturbado, ouve vozes: são vários os conselhos que o mal que habita no seu interior lhe dá.
Eles estão de um lado do muro: o rapaz e a menina.
Do outro lado do muro estão os que salvarão a menina do inferno do sequestro... Os profissionais preparados, destemidos, os que num momento como este estão prontos a usar a razão, desprezando qualquer tipo de emoção que queira lhes ocupar o peito. Naquele momento, no peito, somente o colete à prova de balas. Nada mais. Concentração, anos de preparo, racionalidade. Objetivo único: sucesso na operação de resgate.
O país para diante da visão da menina na janela, acenando aterrorizada, sem saber que seria a última vez que a veria viva. A mídia faz seu trabalho informando, alarmando, conjecturando, especulando... E o que eu pensava tratar-se de profissionais preparados aparece-me diante da tela da televisão como um monte de homens atrapalhados que se embolaram numa cena quase ridícula de se assistir, levando ao tiro derradeiro: a menina está morta.
Quem senta no banco dos réus? O rapaz, o tormento em vida. Não importa se antes da infeliz invasão ao apartamento ela estava viva, e ainda com alguma esperança de sobreviver ao inferno. Ele atirou, o moço. Que se sente lá.
Quem matou a professora no ônibus 174? O sequestrador ou a infeliz ação dos profissionais (des)preparados?
Quando um governo não dá escola, não oportuniza emprego.
Um trabalhador que não recebe um salário digno precisa estar mais tempo fora de casa para garantir que o sustento da família dure os trinta dias do mês. Na maioria das vezes, as crianças costumam ficar em casa sozinhas enquanto seus pais dão conta do trabalho.
Quando um governo não dá emprego, não oportuniza a dignidade.
Quando um governo não dá dignidade, não oportuniza a FELICIDADE.
Em meio a dias de triste realidade essas pessoas “abortadas” pelo Estado vão vivendo: duas, três conduções lotadas para chegarem àquilo que chamam de trabalho, marmitas frias, calor, insegurança das ruas. Depois do expediente, o retorno, sob as mesmas condições – aí acrescentado o cansaço extremo! – àquilo que chamam de casa. Voltam, mecanicamente, porque tem que ser assim: chegar, comer o que for possível e dormir para acordar poucas horas depois e começar tudo outra vez. A mecânica da vida triste.
Quantos sentimentos perversos devem rondar a mente de uma pessoa que vive uma rotina dessas? Não é difícil imaginar.
O rapaz que sequestrou a menina esteve, eu não tenho dúvida, durante todo o tempo dentro daquele apartamento tão transtornado quanto ela. Os profissionais do lado de lá do muro é que não. Repórteres sabem lidar com emoções e controlá-las. Policiais também.
Que tipo de transtorno atingiu o sequestrador do 174? O de ter uma vida regrada, normal, uma infância feliz, com direito à decência? Não creio.
Fácil pôr no banco dos réus um ser humano – porque ele é, eles são, todos, diante de Deus – e acusá-lo, e condená-lo pelo assassinato da menina, pelo estupro da senhora, pelo roubo do relógio, pelo sequestro do senhor. Condenados que são, vão para as cadeias que os esperam enquanto o governo inocente inconteste fabrica as próximas figuras dos retratos das manchetes dos jornais com sua oferta de serviço público precário e seu parco interesse numa verdadeira educação de qualidade.
O aborto é ilegal – e devo dizer que dou Graças a Deus por isso! - mas os bebês estão nas latas de lixo, nas esquinas, nos sacos de mercado. Os bebês crescem e ficam pelas ruas, meninos a amedrontar-me com suas giletes nos sinais de trânsito. Os meninos crescem e ficam pelas ruas a planejar o sequestro de suas ex-namoradas, porque elas não podem ser mais uma a abandoná-los também.
Um professor que não ensina e reprova alunos ao final do ano é réplica de um governo que nada oferece, mas trancafia quando cobra.
Se eu ouvisse um pouco da história de cada detento numa prisão, certamente sairia dela revendo muitos dos meus conceitos...
Um professor que não ensina não pode reprovar alunos ao final do ano. Estou lá, também, no banco dos réus, sentada com o rapazinho que entendeu ser amor aquilo que talvez até possa ter sido paixão, mas que, certamente, foi uma tentação dos demônios. Estou lá, e a parte que me cabe nessa culpa é a de ser professor e de não ter feito direito a minha parte. E estou lá sabe por que, também? Porque um dia o rapazinho foi um aluno da minha escola, talvez meu aluno. E como fui um professor que nada ensinei, mas que reprovei, ele repetiu os anos de escolaridade, repetiu, repetiu, mas nada aprendeu. Nem mesmo a ser um homem de verdade. Porque reforcei nele os conceitos enraizados que ele já possuía: o de que nada valia, nada sabia, nada tinha, nem um futuro a vislumbrar...
Enquanto o governo enxergar a escola como superficial produtora de eleitores, e tratar com descaso a situação do desemprego e de sua consequência mais aviltante - a desonra do ser humano - produzirá, em mesma escala, os sequestradores, assaltantes, homicidas e afins. E sairá perdendo, porque estes, se presos, não votam. Ainda.
Mas esta não é uma reflexão só para os nossos governantes. É pra mim, também. Porque cada um que ocupa um dia o banco dos réus é julgado por um erro que também eu cometi, por inocência ou omissão. Porque cada vez que ratifico as intenções do lado sujo da política com minhas atitudes medíocres de cidadão e - ainda pior! - professor, dou minha contribuição às estatísticas: mato mais uma menina num apartamento.

3 comentários:

  1. Ai que arrepio!!! Fiquei "pesada" dessa vez teríamos muito o que conversar dos concordo, discordo. Mas, acho que valeu o sacode. Bjs

    ResponderExcluir
  2. Parabéns.
    ótimo texto.
    Prof. Jorge Pétrus.

    www.professorjorge.org

    ResponderExcluir