domingo, 22 de abril de 2012

22 de abril

(Em 22 de abril comemoramos o Descobrimento do Brasil. Tudo isto porque Ivo viu a uva e Fifi é a foca de Fábio. Loucura minha? Infelizmente, creio que não.)


Na minha concepção, o Brasil existe desde que Deus criou o mundo. Sei lá, mas eu acho que quando o mundo foi criado, água e terra foram definidos. Nos continentes, as demarcações. E numa delas, o que Deus esperava que fosse o Brasil.
Povoada a Terra – pela forma como Bering ou Niède Guidon defenderam – aos índios coube ocupar a parte mais bonita: e eles vieram e multiplicaram-se, inspirados pela sedução de nossa natureza inigualável! Inteligentes, não precisaram saber que “Ivo viu a uva”, tampouco que “Fifi é a foca de Fábio” para inventar sabores, temperos, iguarias e deliciarem-se com elas. Provaram bichos, plantas, minerais. Sábios índios!
Viveram o paraíso que Deus oferecera a Adão e Eva com direito a comer a maçã sem precisar ver a serpente. E plantaram, em respeito a uma rica natureza encontrada.
Até que receberam uma visita insolente num 22 de abril. Diante de uma barulhada de naus atracando e um cheiro insuportável de portugueses sem tomar banho há meses viram homens fincando uma bandeira num punhado de terra e dizendo em alto e bom tom: Descobrimos o Brasil!
Os índios não sabiam ler nem escrever. E Pero Vaz de Caminha trazia consigo uma carta. Ponto para os portugueses: agrediram os homens, estupraram as mulheres, roubaram o que puderam e saíram, avisando que voltariam assim que pudessem...
Na escola eu aprendi que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral (a gente dizia: “um cascudo não faz mal”, quem se lembra?), e que isto se deu em 22 de abril de 1500.
Em 1996, no curso de Pós-Graduação da UFF, recebemos um rapaz que havia sido vítima do massacre de Eldorado dos Carajás. Ele fora convidado para falar sobre a luta do movimento dos sem-terra. Contando sobre sua infância, revelou-nos ter sido alfabetizado numa aldeia indígena, por professores indígenas. O rapaz aprendeu lá que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral.
Ando às voltas com o processo de alfabetização de Antônio, que está com seis anos de idade e cursa o 1º ano de escolaridade, embora já saiba ler e escrever. Antônio nada me disse sobre o feriado de hoje. Está dormindo agora, e eu não vou acordá-lo para questionar dele o que se comemora em 22 de abril. Tenho certeza do que ele me responderá.
Todos os índios enganados, iludidos, violentados e mortos em 1500 nos contam a história de um Brasil que era um antes de Cabral, e tornou-se outro depois dele. O Brasil foi criado por Deus, e descoberto pelos primeiros andarilhos que lá chegaram. Eu disse tanto isto aos meus alunos!!! Não se descobre um lugar que já é habitado. Mas sempre evidenciei a força da convenção da escrita. Nada havia de registro nas mãos daquelas criaturas inocentes e analfabetas. Isto Portugal apresentou, e muito bem feito. Bastou, para tornar-se dono do Brasil.
Quem tem o poder da caneta tem tudo, ainda hoje, quinhentos anos depois. De nada adiantou o saber – tamanho! – que os índios possuíam acerca daquela terra. Foram reprovados e expulsos dela. Como de nada adianta, quinhentos anos depois, Antônio saber ler e escrever, se quem tem o poder da caneta nas mãos quer que ele cubra os pontilhados que formam a letra b. Se as questões da prova exigirem perfeição ao cobrir a letra, Antônio será reprovado, mesmo sabendo escrevê-la.
Em 22 de abril de 2500 não estarei mais aqui. Mas espero que as coisas estejam melhores para os descendentes de Antônio. Para isto, faço como os índios, vou plantando minhas sementes, em respeito à natureza, tentando abrir olhos e ouvidos de uma gente que não aprendeu a avaliar, mas aprendeu a reprovar e a expulsar.
E sigo na defesa de que os índios descobriram o Brasil. Um Brasil lindo, saudável, rico e cheio de vida, que começou a morrer depois daquela invasão criminosa e desumana. É mais ou menos como a escola faz com meu Antônio e outras criancinhas: recebe-os lindos, saudáveis, ricos e cheios de vida e, ao começar a apresentá-los o alfabeto – quase como uma violação – mata-os diariamente, na tentativa absurda de que cubram perfeitamente os pontilhados...
Ninguém cobre pontilhados para aprender a viver! Se a vida sempre seguiu em frente, por que a Escola insiste em andar pra trás?
Neste momento, percebendo Antônio acordado, perguntei a ele se a “tia” lhe falou alguma coisa sobre o dia de hoje. E fui surpreendida, desta vez: Antônio não sabe quem foi Pedro Álvares Cabral. Nada sabe sobre o Descobrimento do Brasil. A “tia” não lhe disse nada.
E eu, já não sei o que pensar...

4 comentários:

  1. Então ainda há tempo de contar-lhe a verdade sobre a Visita ou a Invasão. Aproveite, o esquecimento da "tia", e conte-lhe também sobre os índios felizes e saudáveis, sem o preconceito estereotipado que foi o que fizeram com a minha filha, na aula sobre os índios, na qual a professora falou de um ser preguiçoso, que não gostava de trabalhar.

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    1. Triste ter que darmos as aulas por elas... Pagamos para quê, afinal?

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  2. Nossa, você arrebentou nesse texto!!! Sua história veio embalada num envólucro de revolta e indignação que envolve e acorda a gente. Ai de nós, educadores, quando não nos revoltamos e rebelamos contra as diversas histórias contadas e recontadas de forma fria e mecanizada. Hoje visitei umas escolas e quase chorei quando vi, alguns alunos na sala de aula, com a professora, sem ir para a Educação Física pois não haviam terminado de copiar o "exercício para a prova" (segundo a professora). A curiosidade me obrigou a olhar o que estava escrito naquele quadro negro, verde, sei lá que cor tinha. Desabei, li exatamente o mesmo exercício que fiz quando estava naquele ano na escola. Olha que lá se vão algumas décadas...Culpa do sistema? culpa da professora? Culpa dos alunos que não copiaram e me ofereceram a cena? Não sei responder, só sei que aquela professora não é instruida a fazer daquele jeito mas, talvez, só saiba fazer assim. Não são os computadores que irão revolucinar a educação, as pessoas precisam se revolucionar internamente e arriscar o novo, o diferente, o possível. Saudades de você amiga, por isso escrevi tanto. Bjs

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    1. E eu agradeço o texto!
      Bem, o meu computador, pelo menos, me serve pra isto, pros meus desabafos... Ah, se não fosse ele!
      A revolução a gente segue fazendo... Que bom que ainda nos incomodamos! Assim podemos incomodar alguém. Rs. No bom sentido...
      Saudades de você também... Bjs.

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