sábado, 14 de abril de 2012

Fio de bigode

(Temo que o advento da depilação masculina tenha deixado pra trás um valor da minha época de infância: O valor do fio de um bigode.)


Quando minha mãe engravidou pela segunda vez, desejava que fosse de um menino. É por isso que me chamo Karla: eu sou o Carlos Henrique que não nasceu. Minha mãe nunca me privou de conhecer essa verdade, e durante algum tempo ela doeu no meu coração de criança.
Mas eu já deixei de ser criança há uns anos. E desde adolescente assumi, com o peso da lida nas costas, responsabilidades maiores do que eu. Meus pais me educaram para ser gente. E, no meu tempo – eu fui criada como se vivesse no tempo deles – ser gente significava, entre muitos outros valores, ter palavra. Meu pai sempre utilizava a expressão “fio de bigode” para referir-se às situações em que precisamos dar nossa palavra para assegurar alguma coisa. Ou então, quando queria dizer-me que um homem é suficiente para sustentar a si mesmo.
Então, eu passei a “ter bigodes”, embora estivesse longe de ser Carlos Henrique. E cresci, e tornei-me mulher, e usei por muitas vezes a garantia pura e simples do valor do fio do meu bigode para conquistar credibilidades por aí. Trabalhei desde cedo. Meu primeiro emprego depois de formada professora foi em troca do vale-transporte, em vez do salário. E eu não recebia os vales para o mês, não. Recebia o vale-transporte (aquele ticket azul e rosa, quem se lembra?) referente à volta pra casa e à ida no dia seguinte para a escola. A garantia dada à Diretora de que eu estaria lá para trabalhar com meus aluninhos era o fio do meu bigode.
Foi assim também numa época em que ainda não havia cartões de crédito na cidade. Tampouco eu tinha carteira assinada: o fio do meu bigode permitiu-me comprar apetrechos e enfeites em lojas prometendo pagar ao final do mês.
Hoje homens andam se depilando, e eu ando procurando pelos fios de bigode... Hoje vejo homens precisarem de força física, de coação, de companheiros para atingir a objetivos inescrupulosos em suas vidas. O advento da depilação masculina mexeu nos valores. Os fios depilados deixaram alguns homens sem bigodes, sem sustentação, sem caráter.  E isto vem acontecendo com algumas mulheres, também.
O texto de hoje é um desabafo, porque já tomei quantidade de torsilax suficiente para a semana. E o sol lá fora anuncia que o dia promete, sem deixar de me lembrar de que Deus está comigo. Obrigada, Senhor!
Só quis dizer que sou do tempo em que bastava a palavra do meu pai para as coisas acontecerem: o pão era comprado na padaria, a carne no açougue, o jornal na banca, independentemente de haver o dinheiro para tal. Todos sabiam que papai pagaria quando pudesse.
Quis dizer que quando comecei a trabalhar, minhas experiências ficaram sob minha responsabilidade. E que só cabia a mim responder pelas minhas incompetências, a mais ninguém (o trecho ficou parecendo redundante, mas é isto mesmo!): todas as vezes em que não me senti capaz de exercer uma função fui a única a me defender. Não houve pai, mãe, ninguém intercedendo por mim.
Meu pai resolveu todos os problemas de sua vida sozinho. Magro, franzino, sem estudos, pobre, sem compromissos políticos, valia-se do orgulho que carregava visível no rosto: um bigode vasto, que lhe dava o crédito necessário para ser um homem de verdade.
A família ficou sem o Carlos Henrique. Meu pai ainda cultiva o bigode. Os pelos branquinhos de hoje não diminuem o valor do meu pai. Muito pelo contrário! São testemunhas e contam a história de um homem do qual me orgulho de ser filha. Olhando Antônio de perfil, contra a luz, já percebo com alegria uns pelinhos ensaiando o que será um bigode daqui a alguns anos. Fico feliz, aliviada.
Resta-me educar Antônio para ser gente, mesmo que em sua adolescência a moda ainda seja a depilação. Antônio precisa ser informado, desde já, que os pelos deixados no caminho não abaterão a sua dignidade de homem. Dignidade é ser inteiro, sustentar as próprias palavras e ações. Reconhecer falhas, inabilidades e corrigi-las, ao invés de sobrepujar-se com elas.
Por tudo isto, dou Graças a Deus. Pela família de onde nasci, por ter sido uma intenção de Carlos Henrique, pelas experiências profissionais – sofridas e felizes – que me permitem hoje dizer que sou competente.
Competência requer dignidade. Não há como viver, melhor diria sobreviver, sem a comunhão dessas duas virtudes. E eu continuo vivendo meus dias pedindo a Deus que me abençoe, com competência e dignidade em abundância. Porque quero dizer que sou gente, sem ter vergonha desta confissão.

2 comentários:

  1. Agora, tenho certeza, você entendeu minha dificuldade em estar ao lado de vocês.Bjs. Gui

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    1. Agora, tenho certeza, sei quanto é importante ter você ao lado!

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