sábado, 28 de abril de 2012

Ou bem é público, ou bem particular

(Para que chamarmos "público", se cada um quer o seu "particular"? Ando tendo dúvidas a respeito de como fazer omeletes sem quebrar ovos. Escrevi sobre esta difícil receita...)


Tenho virado as chaves da porta da sala onde trabalho muito preocupada, quando finda o dia. Uma sensação que experimentei durante os dezesseis anos em que tranquei a sala de aula no fim do turno: sempre deixei o trabalho pensando que poderia ter feito mais, e melhor...
Uma vez disse isto num desses encontros de Professores (não lembro se foi num Conselho de Classe) e uma amiga interpelou-me bravamente dizendo que com ela acontecia justamente o contrário: sempre que terminava seu dia letivo ficava feliz por ter feito um bom trabalho.
Minha amiga não havia entendido absolutamente nada do que eu tentara dizer, e ela foi só a primeira da série de pessoas que dia após dia percebo já não entendem absolutamente nada do que digo, do que defendo. Preciso de um laudo psicológico que me convença de que não estou ficando louca...
Hoje começa um “feriadão” que me trará noites de insônia, bem sei. A passada já preconizou isto. Tudo por causa da porta fechada no final do expediente.
Em 1993 ingressei para o serviço público. Ingresso tardio, mas opcional. Comecei, então, a experimentar a interpretação das pessoas acerca do que é ser servidor público. Eu vinha, graças a Deus, de uma lida de dez anos na rede particular de ensino, onde aprendi a respeitar o diretor da escola, chegar na hora para o trabalho, cumprir minhas obrigações de planejar aulas, preencher diários de classe, corrigir cadernos e provas, não faltar, prestar satisfações quando cometia algum deslize, e dar boas aulas, independentemente do público que me esperava sentado nos bancos da escola. Era isto, ou o desemprego.
Mas desde que conheci o serviço público comecei a perceber que ali não funcionava assim. E havia um discurso podre que soava nos pátios na hora do recreio – ou dentro da sala dos professores – de que “éramos efetivos”. Todos os dias, na rede municipal e, depois, na estadual, eu fui observando com muito sofrimento, o desrespeito dos meus colegas com o diretor da escola, o desleixo no planejamento e aplicação das atividades escolares e a falta de comprometimento com seus alunos. Não se prestava satisfação a ninguém quando se faltava ou atrasava, e bastava que se percebesse um aluno fora do “padrão A de comportamento”, para ouvir a célebre frase: “Ou ele, ou eu”.
Olhando para trás, agradeço a Deus por tudo o que vivi. Pela experiência na escola particular até conhecer a pública. E pela experiência na pública até chegar aqui. Estar na Inspeção Escolar construída dessas práticas fez com que eu realizasse um trabalho diferente e, principalmente, intencionalmente pedagógico, para além de burocrático.
Hoje do lugar onde estou vejo a lagoa de Iguaba, linda, linda, a despeito de tudo o que dizem sobre ela. Vejo um céu azul e o Sol, e é o que me alimenta. Já declarei meu amor pelo Sol noutro texto, não serei repetitiva. Mas para olhar a lagoa e meditar, precisaria estar de costas para a educação da minha cidade, porque teria que virar a minha cadeira, deixar de ouvir as pessoas, quiçá trancar a porta e não fazer mais nada. Então, dou aquela olhadinha assim que chego à sala, faço minhas orações, peço a Deus as forças que me forem necessárias para viver o dia, e O vejo me abençoando, quando passa um barquinho lá no fundo da lagoa com um pescador solitário ou quando observo uma garça alçando voo, resistente ao vento, em busca do que o pescador trará.
Venho sendo convidada para a batalha por defender um serviço público que se quer particular em alguns muitos casos... Batalha diária, aparentemente invencível. Hoje ando preocupada com a visão, pior, com a conclusão a que as pessoas vêm chegando de que o que é público pode ser particular, dependendo do caso de cada um.
Todos querem solução. Mas só alguns aceitam fazer sua parte. Como se quisessem provar uma deliciosa omelete, mas não houvesse quem oferecesse os ovos.
E, tendo visto os sonhos que eu tinha quando prestei concurso para professora da rede pública despencarem à medida que eu ia tomando pé do que acontecia verdadeiramente lá dentro, há algumas semanas venho tentando convencer-me de que não é isto – aquilo tudo! – o que estou vivendo agora.
Ou bem a coisa é pública, ou bem é particular. Se só concordo com mudanças quando nada “respinga” para o meu lado, não sei olhar para o que é público. Não há particularidades no público. Não há o meu. Só há o nosso.
Eu desisti de ser professora da rede pública de ensino quando me envergonhei de dizer que o era. E retornei ao trabalho nas escolas particulares. Porque nasci pra ser subordinada, talvez. Nasci pra respeitar o que é do outro, nasci pra respeitar o meu aluno na forma como ele entrou em minha sala de aula. Nasci para cumprir as obrigações do regimento. Nasci para trabalhar honestamente em troca do meu salário. Nasci para trabalhar em troca do meu salário.
Desde que sou Inspetor Escolar da rede pública orgulho-me do que faço. E envelhecer – esta dádiva de Deus! – fez-me sentir ainda mais vontade de trabalhar quando encontro gente pequena querendo ser o público só para satisfazer o seu particular. Deus é tão bom pra mim que não me anima a desistir desta vez.
Quanto tempo vai durar, eu não sei. Vai durar o tempo que Deus quiser. Mas se eu conseguir fazer com que algumas pessoas – nas quais ponho toda a minha fé – percebam que vaidades pessoais não levam ninguém a lugar nenhum quando tudo o que se quer é fazer o bem para TODOS, terá valido a pena.
Hoje ainda me olho no espelho sem ter vergonha da imagem que vejo refletida. E fico feliz por trancar a porta resoluta. Luto pelo justo, não pelo que me satisfaz. Pelo que venha a ser bom pra todo mundo, não só pra mim. E luto com minhas próprias armas, não preciso de escudos, nem de subterfúgios. Enquanto for assim, ficarei onde estou. Enquanto Deus quiser. Hoje o meu particular é ser público, ser fiel aos meus propósitos, ser leal. Porque na hora em que dizer que estou nesta função causar-me vergonha, nada me impedirá de voltar a ser a profissional que sou: exercerei o ofício de Inspetor Escolar com o mesmo orgulho de sempre, graças a Deus!

5 comentários:

  1. O público implica a habilidade e a sensibilidade do olhar coletivo, e o particular, a sensibilidade e a habilidade não vão além do próprio umbigo. O problema é quando entre o público e o particular, existem os "ninguéns" de Eduardo Galeano.

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    1. É. E há alguns ninguéns que desafiam Eduardo Galeano e nem saem tão barato assim...

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  2. Minha amiga Karla Pontes, eu e você, somos duas vidas parecidas, as duas sofrendo com as mesmas feridas. Nos duas somos testemunhas e podemos fazer um relato do amor que temos pela nossa profissão – Professor e Inspetor Escolar e assim vivemos.

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  3. A noção de público X particular hoje está muito confusa. Como temos que ter um culpado para tudo, eu culpo o telefone celular que transformou todos os espaços públicos em privados.
    Quando se pensa em patrimônio público fica pior. Não se ensina mais a noção de bem comum e cada um lambuza o que acha que lhe pertence como se este fosse privado.
    No que diz respeito ao serviço público fica mesmo pior. Quando se decide pelo serviço público o desejo alvo é o da estabilidade, vitalício. Independente de ser ou não um bom profissional. A ideia de SERVIDOR PÚBLICO, aquele que ali está para servir ao povo é irrelevante. Mas mesmo nunca tendo atuado na rede privada, sempre servi ao meu público da maneira mais eficiente para a qual fui admitida. "Se faço pouco pois ganho pouco" deveria se pensar que ganha até demais. Servir em nossa história traz a marca da servidão escravagista. E o nosso povo ainda sonha com ter alguém que o sirva. Por isso nossas escolas não servem para alguns professores, assim como alguns alunos que não se enquadram em seus padrões também não. Daí só podem dar uma boa aula se esses ELEMENTOS forem retirados do contexto pois estes não SERVEM para estudar. Fica a questão desta Orientadora Educacional que recebe todos os dias estes alunos para ENQUADRÁ-LOS: será que estes professores SERVEM para ensinar?

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    1. Teria eu escrito o texto ontem ou há vinte e nove anos, quando assumi o Magistério, e muito pouca coisa haveria de ser modificado. Uma lástima, companheira. Uma lástima!

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