sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Seduzir

(Enquanto tudo evolui rapidamente, a Escola é a mesma. E, ainda assim, acredito que é possível ao Professor ganhar a concorrência. Basta que ele saiba seduzir...)


Quando Antônio era bebê e ainda podia ser contido pelo carrinho eu o colocava diante da TV para conseguir lavar uma louça em paz. Sim, é a mais pura das verdades. Num desespero por ver a louça se reproduzindo em cima da pia (sim, ela se reproduz!) e nenhuma condição de dar conta daquilo com ele fora do carrinho, era esta a minha solução: trava nas rodas e televisão ligada.
Mas para poder fazer isto, eu seduzi Antônio. E muito tempo antes de deixá-lo frente a frente com seu programa preferido, eu ensinei Antônio a assistir à TV... Sentava-me perto dele, e reagia a cada emoção sinalizada: diante dos monstros, a cara de espanto. Diante das fadas, a expressão de paz. Diante da dor, um ar de tristeza. Diante do susto, um pulo pro alto... E Antônio começou a estabelecer uma relação entre os sentimentos e as reações do corpo. Eu lembro que durante os jogos da Copa do Mundo (ele estava com uns quatro meses) ele balançava as perninhas como se chutasse a bola e vibrava – creiam! – quando o gol acontecia.
Logo depois que saiu do carrinho – liberdade inestimável para qualquer ser humano que completa um ano de idade – Antônio foi capaz de emocionar-se sozinho vendo TV: chorou pela primeira vez quando Pinóquio foi preso numa gaiola pelo dono do circo que queria ganhar dinheiro às suas custas... Hoje, ri das piadas do Chaves, compadece-se da menina pobre da novela Carrossel, e responde “de igual para igual” às alfinetadas dos vilões dos desenhos animados.
Eduardo Galeano tem um texto que fala sobre um pai que ensina o filho a olhar o mar. É um dos que mais gosto. E sempre que me vejo relendo o conto, lembro do meu passado tão recente com Antônio.
Hoje, no seu quarto há tantos livros! São duas cestinhas cheias deles. Histórias grandes, pequenas, com gravuras, sem gravuras... Antônio não dorme se eu não ler uma delas. E a hora da leitura é a hora do nosso encontro mais especial: são as várias versões da Karla que se multiplicam sobre a cama para definirem suas personagens. Uma diversão, que nem dura muito tempo assim, cansados que estamos, os dois, quando é chegada a hora de dormir...
Todo o interesse que hoje meu filho tem pela leitura vem do encanto que eu fiz questão de semear. Dá trabalho, mas é muito bom ver o interesse dele por qualquer tipo de leitura que tenha em mãos. Quando ganhou o Nintendo 3D não me fez qualquer pergunta sobre seu manuseio (nem sei se saberia lhe responder!): pôs o manual de instruções embaixo do braço, deitou-se no chão da sala e foi “pesquisando” e experimentando, até colocar o “treco” para funcionar. Hoje faz de tudo com aquilo. Coisas que custo a acreditar!
Tenho uma amiga que diz que as crianças hoje em dia já nascem com um chip. Isto pra mim é coisa de Nova Era, não gosto de pensar assim, não. Mas levando pelo lado metafórico, as coisas dentro desta máquina que chamamos de computador evoluem tão rapidamente que se piscarmos um pouco mais lentamente perdemos alguma informação.
Diante desta evolução acelerada, a sala de aula está lá, do mesmo jeito. O quadro, que era negro, agora é branco. O que era um giz branco, agora é uma caneta azul. E só.
E quem seduz? Porque por incrível que pareça, ainda é possível seduzir a criança, apesar da concorrência tecnológica.
Os livros das cestinhas de Antônio não seriam nada se eu não o convidasse à leitura, não lhe apresentasse o que há por detrás daquelas capas, o que se pode encontrar descerrando aquelas páginas, uma a uma... Assim também, nada haveria de bom naquela caixa de imagens – nada mesmo! – chamada televisão, não fosse eu ter me sentado ao lado de Antônio e o seduzido: há coisas boas, venha ver!
Cadeiras, mesas, quadro, giz. Sobre as cadeiras, meninos e meninas. Sobre o tablado, o adulto. E a sedução, que deveria estar viva naquele espaço de concreto, está lá fora, no que se pode ver pelas janelas ou frestas da porta: o amigo da sala ao lado que já foi dispensado e agora transita pelo corredor, o carro bonito com som alto que passa na rua, o jogo de futebol que os outros meninos curtem na quadra da escola, a cabeleira ruiva da menina que corre feliz na calçada atrás do seu cachorrinho...
E na inexistência de sedução por parte de quem deveria ser o responsável por fazê-lo, os dias passam, os anos passam, e aquilo que era antes uma “pelada”, um som bacana, um cabelo ruivo saltitante, transforma-se agressivamente e sob nossos olhos, num cigarro, num pacotinho de drogas, num bar. E nossos alunos vão trocando a vida pela morte enquanto damos nossas aulas copiando o plano de aula dos anos anteriores, sem qualquer modificação, como se não precisássemos trocar o HD do computador para não sermos ultrapassados.
O quadrado e o concreto podem ser os mesmos, as escolas não precisam de grandes mudanças em suas estruturas físicas para salvar os jovens de tudo o que lhes conduz à morte. O agente da sedução chama-se Professor. E este é o que é, onde quer que esteja. Porque onde quer que esteja, onde quer que vá, carrega consigo um coração pulsando, no mesmo ritmo que pulsa o coração do seu aluno. Onde quer que vá um Professor, ele leva seu conhecimento, sua paixão. E onde tem paixão tem que ter a sedução, senão ficamos fadados ao amor em uma via só, coisa tão triste de se ver acontecer!
Saber seduzir, eis o desafio! Nada haveria naquele mar tão grande diante dos olhos do menino, não fosse o pai a explicar-lhe cada detalhe, como no texto de Galeano. E foi o que exercitei com Antônio, desde que percebi que ele já interagia com seu entorno. Hoje meu menino observa atentamente o caminho das formigas, acompanha o desabrochar das flores do quintal da nossa casa, brinca traduzindo as formas das nuvens, procura a coruja, busca novos prismas quando fotografa as coisas por aqui.
É possível. Ensinar os conteúdos é possível. Aprender os conteúdos é possível. Concorrer com tudo o que há de mais novo lá fora é possível, mesmo que se tenha apenas umas pedras de giz nas mãos e um quadro-negro na parede. Basta que tenhamos o coração aberto, preenchido pelo orgulho de sermos Professores. Basta que saibamos seduzir.

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