terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Volta às aulas

(Estou muito feliz por poder confessar meu verdadeiro desejo nestes tempos de retorno à Escola. Aos profissionais do magistério - todos! - meus amigos peço que, antes de irem para suas Escolas e Secretarias, dediquem um tempinho à minha mensagem...)


Certa vez trabalhei à noite numa escola daqui de Iguaba. Lá matriculou-se José, um aluno que sempre chamou-me a atenção pelo bom comportamento: educado, calado, preocupado em estudar. Assíduo, inclusive, coisa que pouco se vê na rotina do terceiro turno. Fez os quatro últimos semestres do Ensino Fundamental e foi-se.
Tempos depois fomos – eu e o pessoal da secretaria da escola – visitados por policiais militares. Estavam à procura do “Índio”. Observados os registros das matrículas naqueles determinados anos e comparando as fotos que traziam consigo com as que compunham os documentos dos alunos, concluíram ser José o homem procurado. Informamos aos policiais que ele já havia concluído os estudos. Lamentando, eles se foram, certos de que não mais o encontrariam. José estava sendo procurado por ter estuprado uma menina de três anos num outro estado...
Uma vez visitei a Delegacia local daqui para prestar depoimento sobre um assalto à mão armada que sofri dentro de casa. O delegado, então, mostrou-me um álbum de fotos de pessoas já detidas por pequenos furtos ou roubos em residências, com o objetivo de que eu reconhecesse aquele que havia “visitado” meu lar. Quando comecei a folhear encontrei no álbum muitas fotos de ex-alunos das escolas em que trabalhei. A maioria, os mais tranquilos...
Em outra situação um aluno de excelente comportamento repentinamente apareceu vestindo saias comunicando-nos que agora queria ser chamado de “Roberta”. Em outra, um tanto similar, a menina de boas notas compareceu com sua mãe solicitando ser tratada como “João” daquele dia em diante...
Conheci também uma menina de baixíssima estatura, aluna do 6º ano de escolaridade, que não almoçava na escola. E só descobrimos o motivo num conselho de classe de fim de ano: ela não alcançava o balcão do refeitório e envergonhava-se de solicitar a alguém que lhe fizesse este favor. Difícil crescer uma criança que não se alimenta! Uma outra não ia ao banheiro da escola porque suas pernas deficientes não alcançavam o sanitário. A escola não providenciou o acesso digno àquelas meninas. Uma não almoçava. Outra, esperava a hora de ir para casa para usar o banheiro...
O pai de família que golpeou a esposa e os três filhos com uma foice havia estudado numa de nossas escolas, também. E deve ter sido “bom aluno”, como foram “diagnosticados” o menininho que atirou na Professora em São Caetano e o rapazinho lá de Realengo... Os dois se suicidaram, não foi? Não me lembro bem...
Quando as aulas começarem estarão todos lá: o estuprador, o bom menino, o assaltante, o inteligente, o bêbado, o baixinho, o gênio, o tímido, o extrovertido, o alegre, o sofredor... Estarão lá, misturados numa fila indiana, com seus olhares cheios de expectativa acerca do que será do ano letivo que se inicia. Estarão lá, como estivemos um dia nós, Professores, Diretores, Orientadores Educacionais, Supervisores e Inspetores Escolares, crianças que fomos, ou como adultos que voltam ao ambiente escolar para dar conta de um atraso acontecido por algum motivo mais forte.
Importa que estejam lá, pela primeira vez ou retornando. Eis o meu grito por socorro!
Alunos nossos não podem nos surpreender com decisões tomadas a respeito de comportamentos (muito menos devem ser avaliados pela forma como se comportam). Temos que estar intencionalmente alerta. De nada adianta preocuparmo-nos com o currículo se continuamos sendo pegos subitamente com manchetes de jornais que dão notícias de homens e mulheres – agora também de crianças! – que já passaram por nossas mãos!
O menino que resolveu ser menina, e a menina que resolveu ser menino não tomaram a decisão sem sofrer (como é sofrida na adolescência, também, a decisão do menino de ser menino e da menina de ser menina). Tampouco, de uma hora para a outra. Passaram por situações conflitantes. Seus corpos provavelmente falaram durante um bom tempo, inclusive na escola... Quem foi que percebeu? Quem está hoje na escola, como professor ou técnico, atento aos amores, às paixões, às circunstâncias de maravilha e temor que compõem a adolescência?
A história de toda essa gente já foi contada. Umas até estampadas em jornais. Mas quando o sinal da escola tocar anunciando a hora da forma estarão lá, no primeiro dia de aula, todos os atores dos próximos capítulos que construirão a história nova. E não podemos nos esquecer de que somos coadjuvantes dessa história também.
Meus ex-bons alunos eu reencontrei. Estão todos bem, graças a Deus. Os ex-maus alunos perderam-se de mim. Sinto saudade de Luís, um menino que em 1993 quando ameaçado pela mãe por alguma travessura feita dormia numa pocilga, o que o fazia faltar à aula do dia seguinte. O odor fortíssimo do lugar impregnava suas roupas e era fácil descobrirmos onde tinha passado a noite. Uma vez presenciei a Coordenadora repreendendo Luís. E chorei junto com ele. Nunca mais esquecerei o olhar fixo dele no meu: cumplicidade.
Estamos todos - nesse contexto virtual em que vivemos – carentes de cumplicidade. Eu não quero mais ver a escola (ou a inoperância dela) nas entrelinhas das manchetes de jornais. Quero reaver o orgulho, o sentimento de dever cumprido latentes nos corações daqueles que se dizem profissionais do magistério. Na última vez em que fui Diretora de escola, trabalhei com o vestido molhado das lágrimas de um aluno a quem dei colo quando confessou estar apaixonado por uma colega de classe. Hoje, eles estão pra casar. Valeu a pena!
“Volta às aulas”... Ainda tenho a esperança de que um dia isto nos soe, verdadeiramente e para sempre, como um excelente convite!  Não somente a sermos bons educadores, mas também a sermos integralmente humanos.

18 comentários:

  1. Karla,
    Faço minhas as suas palavras, como nós Educadores precisamos estar mais atentos, mais solidários, sermos ouvintes e sobretudo saber o que dizer e o que fazer em determinadas circunstâncias...Como eles precisam de um ombro amigo, de carinho, de tratamento digno que na maioria das vezes não tem em casa e na Escola passam despercebidos, até invisíveis e em alguns casos estigmatizados...Beijos, e fico feliz de confirmar que você tem este olhar, parabéns!

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    1. Não quero deixar de ter esse olhar, Cleuza, jamais! Às vezes escrevo pra que eu mesma não me esqueça, não me acomode também.
      Obrigada. Bjs.

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  2. É isso Karla.
    Olhar e ver nossas crianças e colegas além da posição que ocupam, afinal estamos todos no mesmo barco.
    Sua última frase deixa uma reflexão.
    Podemos realmente ser bons educadores sem sermos integralmente humanos?
    Mais uma vez parabéns pelo belo texto.

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    1. Obrigada, Nete. O objetivo é justamente o de refletirmos antes da "volta"...
      Bjs.

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  3. Enquanto tivermos sonhos,não nos importaremos para retornar ao lugar que escolhemos para trabalhar e pelo baixíssimo salário.
    Iracy

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    1. Sonhar é imprescindível, querida Iracy. Daí o apelo para que respeitemos os sonhos de nossos pequenos também...

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  4. Karla, este texto precisa ser utilizado nas nossas reuniões de profissionais, pais, alunos, pessoas. Você foi de uma extrema delicadeza ao falar daquilo que não queremos ouvir, não queremos ver, não aceitamos existir. Interessante quando você fecha o texto e usou a palavra "soe" no sentido de soar aos nossos ouvidos e eu li no sentido de serviço de orientação educacional, não consigo ler sem perceber a importância do nosso fazer nessa escola, a responsabilidade de fazer por esses alunos. Obrigada por me puxar nesse momento e dizer: temos muito trabalho, vamos unir forças.

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    1. Arrepiei-me, Mariza! Obrigada. Era só isto o que eu queria: que ouvissem meu grito, antes que aulas começassem... Agradeço por mais esta emoção.

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  5. Eu sempre me perguntava o que sente um professor(a) quando perde um aluna para o tráfico?
    Um dia recebi uma resposta de um professor do CIEP de Vigário Geral-RJ, e fiquei impactada NADA mas foi tão de pronto o NADA que não contra argumentei. Vou divulgar esse texto tato quanto eu tiver oportunidade pois você respondeu o que eu queria ouvir.

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    1. Talvez eu não tenha respondido a você... Talvez o texto tenha lhe ajudado a refletir... Pra mim, já valeu a pena! Obrigada, querida!

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  6. É karla, essa reflexão temos que fazer a todo momento, cada um na sua prática. O fazer pedagógico é muito complexo, porque é humano. Quando o pedagógico deixa de ser humano e começa a ser só técnico,o nosso trabalho não atinge a quem deveria atingir: O aluno. Dentro da escola, as relações interpessoais,são muito significativas e importantes para se construir um processo ensino e aprendizagem de qualidade.
    Fica aqui a minha sugestão para você escrever um texto, sobre as relações interpessoais na escola.
    Deixo também duas sugestões de textos, que acredito que vem reforçar o que você escreveu:
    1- Escola (Paulo Freire)
    2- A escola dos meus sonhos (Frei Beto)
    Parabéns pelo texto, e pela reflexão que o mesmo nos proporcionou.
    Bjs, Dilcéa

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    1. Fico feliz de que tenha cumprido a promessa de ler este texto antes do retorno... Obrigada pelas sugestões e pelo elogio, Dilcéa!

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  7. Karla, boa noite!
    Parabéns pelas palavras, as quais não me surpreendo. Analisar em poucas linhas o resumo de um ou uns anos letivos como você o fez, também me faz refletir de que em todas as oportunidades que me são disponíveis, tento com palavras mais simples mostrar aos nossos alunos que todos nós somos responsáveis pelos nossos destinos, e que na dúvida, insegurança ou outro sinônimo, eles devem sim, procurar aquele ou aquela que lhe passe a segurança e esclareça essas dúvidas. É muito triste saber que um dos nossos "pupilos" acabou se distanciando daquilo que seria melhor para ele(a), e que por um minúsculo detalhe, um dia, um momento, ele acabou por não aproveitar melhor a oportunidade.
    Quanto a nós, acho que cabe sim, orientar e até "tomar conta" para que o fracasso não seja somente o fracasso deles.
    Parabéns pela iniciativa e muito obrigado pela oportunidade de participar desse momento.

    Arnaldo Preuss

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    1. Querido Arnaldo
      Fico feliz em ver que visitou-me por aqui... Parece que gostou do que escrevi. Sempre que puder tire uma horinha para conhecer os outros textos e contar-me sobre sua opinião. Tem bastante coisa aqui. Obrigada!

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  8. Belo texto... belo (pre)texto... triste contexto... Já dialoguei com vários autores, briguei com eles por terem tido a ideia ou a capturado bem antes de mim, até porque ela ali está por algum canto da escola, seja na sala de aula, no auditório, no pátio, nos corredores etc. "Alguém" muito sensível resgatou ADÉLIA PRADO com a seguinte poesia: "Deus de vez em quando me castiga. Me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". E a gente que 'continua' sensível às coisas da escola, às coisas do mundo, às relações interpessoais entre os seres, entre os homens, entre professor e aluno, entre um ser adulto (supostamente 'grávido' de experiências) e uma criança, um adolescente (em pleno desenvolvimento intra e extra material, corpóreo, físico, mental, orgânico, espiritual), tenta buscar referências, respaldos para entender o tipo de formação porque passa certos professores. Já tive a oportunidade de lhe escrever o que penso sobre esse tema. Não consigo conceber um profissional, seja ele quem for, buscando sua formação técnico-profissional, esquecendo que antes dessa, existe a formação humana, aquela que deveria vir de berço. Amar o ser humano independente de quaisquer condições.
    E aí vem você, mais uma vez rápida no gatilho, que saca do seu coldre mais essa pérola, que garimpa lá dos limbos palavras perdidas, como muito bem colocado-criado-gestado-parido por Drummond: " Penetra surdamente no reino das palavras.
    Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
    Estão paralisados, mas não há desespero,
    há calma e frescura na superfície intata.
    Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
    Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
    Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
    Espera que cada um se realize e consume
    com seu poder de palavra
    e seu poder de silêncio.
    Não forces o poema a desprender-se do limbo.
    Não colhas no chão o poema que se perdeu.
    Não adules o poema. Aceita-o
    como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
    no espaço.

    Chega mais perto e contempla as palavras.
    Cada uma
    tem mil faces secretas sob a face neutra
    e te pergunta, sem interesse pela resposta,
    pobre ou terrível, que lhe deres:
    Trouxeste a chave?"
    (A procura da poesia)

    Mais uma vez rendo-lhe minhas lítero-homenagens, faç-lhe minhas eternas reverências, tiro-lhe o chapéu e, como tantas outras vezes, brigo com você - com muito orgulho - por ter escrito um texto, que eu gostaria de ter produzido. E isso por que você está doente! Imagine se não estivesse?
    Beijos e meus parabéns... mais uma vez!

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    1. Meu amigo, repare que o texto foi escrito em janeiro. Eu apenas o propaguei por conta dos desabafos que vinha lendo no face sobre Conselhos de Classe... E como infelizmente percebi que o texto cabia, divulguei por lá. Obrigada por toda a poesia! Adélia é uma mulher maravilhosa (meio macho, das minhas) e Drummond sempre vem comigo ao teclado, quando olho as letras e elas me imploram que escreva. Doente está a maioria dos atores dos Conselhos de Classe que vemos por aí. Que raça de galo será suficiente para liquidar isto tudo e libertar nossos pequenos dos julgamentos indecentes da escola? Ah, sonho! Graças a Deus, ainda ando vendo poesia em pedras...

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    2. Nossa, o olhar clínico de professor é tudo mesmo, claro se este for atento e aberto para realmente tentar buscar!
      Maravilhoso texto, lido e compartilhado em minha rede social aos meus colegas de trabalho!
      Professora Ieda
      Indaiatuba/SP

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    3. Obrigada, Ieda, pela presença e pela partilha! :)

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