quinta-feira, 1 de março de 2012

Plutão reprovou muita gente

(Ter assistido às palestras dos Professores Jair Passos e Vasco Moretto inspirou-me a compartilhar com vocês a minha opinião sobre avaliação, sobre escola...)


Quem vai indenizar a família de Giordano Bruno? Queimaram ele, depois que contestou a “verdade” de que o Sol girava em torno da Terra. Até que, quando já era um monte de cinzas, perceberam que a coisa era exatamente como ele dizia: a Terra é que girava em torno do Sol. Perceberam tarde demais, ele já havia recebido seu castigo.
Se ele estivesse na escola teria sido reprovado, certamente. Plutão deve ter reprovado muitas crianças que na hora da prova esqueceram-se dele. Tinham que decorar os nomes dos nove planetas. Plutão deve ter sido, por ser o último da fila, o mais esquecido. Muita gente perdeu o ano por causa de Plutão. Plutão era um planeta. Reprovou, reprovou, reprovou... Agora descobriram que Plutão não é planeta nenhum. Ufa! Menos um nome para Antônio decorar!... Quem vai indenizar as famílias que tiveram seus meninos reprovados (e desistentes, e evadidos...) por causa de Plutão?
Quando as aulas começam na escola cada professor toma o rumo da sala de aula com a sua pasta cheia de verdades nas mãos. Suas anotações para o dia de hoje (iguais às de ontem, iguais às de anteontem, iguais às dos anos passados) são incontestáveis: dois mais dois são quatro; são quatro as estações do ano; uma planta completa tem cinco partes; o Brasil tem cinco regiões;...
Há uns anos trabalhei numa escola de área rural. Repleta de vegetação nativa. Os meninos corriam e subiam nas árvores na hora do recreio. No dia da prova de Ciências, a pergunta óbvia: “Quais são as partes de uma planta completa?” Eu não sei se eles sabiam responder isto, mas eu sei que quando eles brincavam de pique na hora do recreio sabiam em que árvores podiam subir, porque algumas possuíam galhos que sustentavam seu peso, outras não. E era muito comum ver esses mesmos meninos alimentando-se das frutas que caíam das árvores próximas à escola, porque pelas folhas eles conheciam os frutos que viriam dali.
Mas a professora daqueles espertos meninos não queria saber disto, não. Ela queria saber quais são as partes de uma planta completa. E às vezes os meninos não sabiam isto e eram reprovados. Algumas muitas vezes isto acontecia.
Numa outra escola os alunos de sexto ano de escolaridade ficaram em recuperação na disciplina de História. Uma considerável quantidade de alunos. Alguns não resistiram à aula de recuperação (geralmente é uma só, mesmo) e foram reprovados. A professora fez apenas uma pergunta na prova: “Por que a antropóloga Niède Guidón  não acreditou na hipótese de Bering?” Os alunos que não souberam responder à pergunta tiveram que repetir o sexto ano de escolaridade. Como o sistema do meu município não previa a progressão parcial, os alunos viram pela segunda vez todo o conteúdo de sexto ano de todas as outras disciplinas. Um objetivo: aprender por que a antropóloga Niède Guidón não acreditou na hipótese de Bering. Caso contrário, o jeito seria repetir o ano pela segunda vez.
Eu não sei por que a antropóloga não acreditou na hipótese de Bering. Mas eu passei pelo sexto ano. Provavelmente meu professor, à época, esqueceu-se de me fazer esta pergunta tão importante! Ou até fez com que eu decorasse a frase, reproduzisse na prova e a esquecesse para todo o sempre.
Eu vi uma prova de Ciências em que a professora – uma daquelas que conta as horas para se aposentar – dá como certa uma resposta em que o aluno diz que o cérebro é o maior osso do corpo humano. Certa a resposta da prova, que também era de recuperação, foi aprovado o aluno. Cérebro é osso. E o maior do corpo humano. Quem discorda?
Segue a vida assim, os anos passam, e enquanto cada um batiza sua verdade alguém perde o ano por isso. E, no entanto, o mundo está aí, tal como é. Tal como Deus criou. Nada mudou depois que a Inquisição Romana queimou Bruno em 1600: o sol nos aparece como o vemos pela manhã e nos deixa à tarde. A planta completa tem cinco partes. E o homem chegou à América, vindo de um lado ou de outro, mesmo tendo brigado a Niède e o Bering. Que nos importou isto na vida que levamos hoje? Que nos importou isto na vida que levávamos tantos anos atrás?
Assisti a duas palestras ontem com educadores renomados e fiquei observando o sentimento - que chegava a aproximar-se de desespero - que lhes tomava o corpo num desejo explosivo de pedir ao professor que pare com essa prática de avaliar pelo irrelevante. Saltavam, quase implorando, tentando exaustivamente revelar ao professor que eles estão mais a frente vendo tudo o que está acontecendo, e tentando lhe dizer que não está acontecendo nada!
Paulo Freire deve ter sofrido a angústia de ter o tempo de vida findado sem saber se atingiu a todos os que pretendia... Foi assim também com Vinícius e Tom Jobim. E com Jesus. E eu, na minha reconhecida insignificância, quis vir aqui deixar também meu testemunho, ainda que desprezível diante do deles:
Não está acontecendo nada! Não há alegria, não há tesão, não há vontade. Ninguém quer ir pra escola, a não ser por motivos que dispensam a presença do professor. Não há objetivos, não há planejamento, ninguém mais se rejubila, se emociona...
As questões das provas – instrumentos principais, e às vezes únicos, de avaliação do aluno – dizem respeito ao que o professor sabe, desprezando qualquer possibilidade de o aluno revelar o seu conhecimento. Aqueles meninos lá da escola do início do meu texto sabiam dizer coisas maravilhosas sobre as plantas. Mas ninguém lhes perguntou, porque ninguém saberia lhes corrigir. Mais fácil perguntar a eles quantas partes tem uma planta completa.
Que verdades estamos ensinando hoje? Meu pai foi reprovado porque não escreveu amor e flor com acento circunflexo.
Recordo-me de uma aluna chamada Flávia que em 1996 foi reprovada na segunda série porque respondeu que a chuva vinha da terra, diante da pergunta da prova de recuperação de Ciências. Sua professora fez um grande “X” em sua resposta, deu errado, e escreveu ao lado: “A chuva vem das nuvens”. Para algumas comunidades a verdade da professora é a que vale. Ninguém contestou o resultado. Flávia apanhou um bocado em casa. E retornou à escola, no ano seguinte, para fazer a segunda série outra vez.


4 comentários:

  1. Karla, seu desabafo é verdadeiro, angustiante, penso que essas coisas realmente ainda existem e que não sabemos o quanto podemos interferir mesmo que aos poucos e num processo. Não desanime, você faz a diferença e já está contaminando educadores através das palavras. Bjs e parabéns!

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  2. Obrigada, Mariza! Vou morrer tentando...

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  3. Oi Karla
    A pergunta continua: por que na vida avaliamos para o sucesso e na escola avaliamos para o fracasso? Parabéns! Belo texto.
    Júlio Furtado

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  4. O que você pretende com um texto como esse? Conquistar a antipatia de número expressivo, mas de qualidade nem tanto, dos professores? Se for isso, garanto-lhe que vai conseguir com muita propriedade e muita facilidade. Com esses questionamentos quero solicitar a sua anuência para fazer com que, talvez, um número bem maior de colegas, 'agarre' aquele ódio com as pessoas que nos oferecem as famosas e indesejáveis carapuças e que nos fazem perguntar aos nossos 'botões-interlocutores': "_Quem ela pensa que é, para nos falar essas coisas? A dona da verdade?" Não esperando que você responda, faço-o por você: Sim, ela é dona de uma verdade irrefutável!
    Beijos e parabéns pelo texto-verdade produzido!

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