sábado, 18 de agosto de 2012

Uma moça de doze anos

(Eu ouvi um pai me dizer que já não há o que fazer pela filha, porque "ela é uma moça de doze anos de idade..." Eu tenho um filho de seis anos, que amanhã terá doze anos de idade... Eu tive doze anos de idade, e meu pai fez muita coisa por mim... Eu não consegui ouvir isto e ficar sem escrever...)


Sua voz ainda soa insistente em meus ouvidos. Espero que escrever, escrever, escrever, livre-me da lembrança auditiva daquele desabafo feito com um sentimento que desconfiei ter sido orgulho. Terá sido, meu Deus? Não é possível! Não, meu Deus, tira de mim a impressão de ter enxergado naquela atitude tanta vaidade!...
Vou organizar meus pensamentos, para compartilhar com vocês o que testemunhei há dias.
Estive diante de um homem, pai de uma menina que está afastada da escola. Para defender-se da acusação de negligência abre a boca e solta a voz proferindo palavras que – por Deus! – eu não queria ter ouvido. Eis a frase: “Tenho em casa uma moça de doze anos. Não posso obrigá-la a ir à escola.
Imediatamente meu coração me levou aos meus doze anos. Eu cursava a oitava série, tinha aulas de História com a Professora Marlene, dobrava a manga da camisa para que algum professor faltasse (era a simpatia da época!), e estava apaixonada por Zé Eduardo, um menino tão magro, mas tão magro que todos o chamavam pelo apelido de “papel”. Zé não sabia de nada, ninguém soube do meu amor. Sempre amei e sofri sozinha, já escrevi bastante sobre isto. Eu era uma criança aos doze anos! Uma menina! E nesta época, lembro ainda muito bem, o cinto do meu pai ficava pendurado num preguinho, no alizar de madeira da porta da área, avisando que naquela casa havia respeito, hierarquia, e a desobediência seria corrigida com cintadas nas coxas...
Nunca precisei experimentar o cinto. Nem lembro, inclusive, em que momento ele deixou de fazer parte da decoração da porta. Sei que saiu de lá.
Sei que nunca faltei às aulas. Ia para a escola (mesmo dobrando a manga da camisa do uniforme), todos os dias, sem maiores questionamentos. Eu sabia que meus pais tinham que trabalhar, sabia do sacrifício que se fazia para se providenciar o mínimo de conforto em casa. Sabia que trabalho, para eles, era coisa de há muitos anos, e que não demoraria muito para eu ter que, também, arranjar o meu. E foi exatamente assim que aconteceu: meu primeiro emprego eu consegui aos quatorze anos. Nem mocinha eu era!
Hoje a moça de doze anos diz ao pai “não vou!”, “não quero!”, e é obedecida em suas vontades por um pai perdido que já não sabe mais em que ordem se estabelece valores no dia-a-dia de uma família.
Quando me falou da filha como quem falava de uma mulher tentei interpelá-lo compartilhando com ele minha ideia a respeito de Antônio. Meu filho tem seis anos. Daqui a apenas outros seis terá doze. Fechei os olhos e tentei visualizar a cena: Antônio me dizendo “não vou!”, após a ordem “vá para a escola!” Impossível, para mim. Que Deus continue acompanhando de perto a criação que dou ao meu menino. Que não chegue o dia de ficarmos do mesmo tamanho. Eu não quero Antônio rapaz, se é por atitudes assim que se define o amadurecer de uma criança...
Eu disse a ele, embora com a certeza de quem não foi ouvida, que ainda há tempo de reverter a situação. Porque sempre acredito que há tempo. Acho que filhos não têm idades. São nossos enquanto existirmos. Se houvesse um tempo determinado para filhos se tornarem independentes, Deus já não caminharia ao lado de muitos deles. E, no entanto, é incansável na companhia: segura nossa mão até nossa despedida desta vida, basta que queiramos...
Mas aquele pai não ouve ninguém. Certo de que faz sua parte, segue, deseducando uma criatura pela qual é responsável. Disse pra mim que se obrigá-la a ir à escola estará assinando uma reprovação por falta, porque sabe que a menina não entrará, diante do portão. Ele é fraco, e eu tive pena dele.
Que nos resta, senão, entregarmos famílias como essas nas mãos de Deus? Valores distorcidos, enraizados, difíceis de serem revertidos. Quem manda em quem, quem obedece a quem? Numa interpretação clandestina das leis, dos ECAs da vida, vamos nos perdendo entre direitos e deveres, utilizando pequenos artigos, alíneas, incisos a favor dos jovens, sem contextualizar situações, determinar os responsáveis pelas ações e, sobretudo, pelas consequências das ações.
E estão por aí, soltos, pais, filhos, professores, alunos. Todo mundo misturado e perdido numa confusão legal que inibe a atitude rigorosa e disciplinar de um professor, enquanto convida o jovem aluno a agir como se fosse alguém que ele ainda não é.
Nos olhos do pai eu vi medo. E vi, também, uma certeza de que faz o correto. Ele teme a filha, por isto faz tudo por ela. Cria o monstro que o devorará dentro de pouco tempo e arrisca-se a ouvir do próprio monstro, enquanto devorado, a acusação – corretíssima! – de ser o único culpado por sua própria morte.
A pior morte é esta: morrer em vida. Ver a criatura pronta, e arrepender-se do que criou. Eu imagino uns choros de Deus, de vez em quando, diante dos canalhas que transformaram o milagre de suas vidas em pecado. E imagino que este pai – pobre homem! – há de chorar bastante: a moça já tem doze anos. Ele diz que já fez sua parte. E eu, peço a Deus por ele.

6 comentários:

  1. ... o pior é que vejo situações semelhantes quase todos os dias na escola onde leciono... é uma grande tristeza, mas é uma tremenda verdade...

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    1. Escrever foi o modo que encontrei para expurgar minhas aflições, cara Mirian... Partilhar diminui a tensão, a culpa... Obrigada por sua visita!

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  2. Eu peço a Deus por nós também. O monstro que hoje o assusta, e que por isso, o criador prefere vê-lo grande e dono das suas próprias vontades, está entre nós, convivendo com nossos filhos e netos. Quem ousa contraria-lo dizendo um NÃO te dou o que você quer? Hoje entendo Renato Russo, quando decidiu não tratar-se para prolongar a vida!

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    1. Mas será que deixar de viver resolve, minha amiga? Qual seria nossa missão por aqui, então? Ah, e nem pude conversar com você quando tudo aconteceu... Deus olhe por nós, enfim!

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  3. aFLIÇÃO...MEDO SIGO FAZENDO MINHA PARTE educando meu filho que daqui alguns dias estará com 12 anos..mas sempre será meu pequeno favo de mel,que tem sonhos e diz sempre que fazer 3 faculdades,kkkkkkkkkkk,piedade Deus pai desse e de muitos outros pais que assim pensam e agem!!!

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