terça-feira, 23 de outubro de 2012

A mão de Deus

(A mão de Deus nos deu um endereço, longe das guerras, da miséria, da morte, do inferno. Você já agradeceu a Ele por isto? Já agradeceu hoje?)


Hoje vim para agradecer a Deus por escolher este lugar para eu viver.

Ontem assisti um pouco do noticiário na TV e aquilo foi o bastante pros meus joelhos se dobrarem e minha oração sair, espontaneamente: Obrigada, Senhor!

Resolvi, então, vir aqui. Vim lhe perguntar se você já agradeceu a Deus, hoje. Se ainda não, vim para lhe dar motivos para fazê-lo. Vamos lá? Vou prosseguir...

Eu vi pela televisão uns casebres. Vi favelas, vi lugares desumanos e vi gente vivendo lá dentro. Casas mal construídas, cômodos únicos, ainda cobertos apenas por tijolos, e gente, muita gente morando neles. Eu vi crianças dormindo num chão que não era de piso frio, mas sim, de terra batida. Crianças com pouquíssima roupa cobrindo o corpo a despeito da friagem que a noite traz. Vi crianças chorando uma dor de fome, tentando mastigar uns peitos já sem qualquer coisa dentro.

Em muitos de cômodos como esses pais e mães dividem espaço com filhos ainda bem pequenos, que lhes testemunham as intimidades. Eu vi – e ouvi! – que algumas crianças que crescem nesse meio fingem dormir para ouvir os gemidos de seus pais na madrugada. Uns gemidos que acusam irmãozinhos uns meses depois... Em cômodos como esses tudo acontece. Não há censura, não há permissões, tampouco proibições. As fezes são feitas em buracos no chão. E continuamente são abertos novos. Os dejetos humanos têm sua parte na divisão do espaço do que não se crê existir.

Ali crianças se drogam, confusas entre as sensações de alegria que lhe são causadas por um brinquedo ou uma cola de sapateiro. A cola mata o que dói no estômago, pelo menos temporariamente, coisa que o brinquedo não faz. E, tendo pai e mãe por testemunhas, vão-se embora na vida de desgraça que nem sabe que vivem...

A mão de Deus livrou você de viver num lugar como este, certo? Hoje teclo num computador, sentada confortavelmente na cadeira da sala, um texto que você lerá talvez até com mais conforto do que eu. A quem agradecer? Esqueceu deste detalhe, hoje? Você lê o texto porque tem bons olhos, olhos cuidados... Tem inteligência, tem saúde, tem tempo para dedicar-se a esta leitura... Está tudo agradecido? Tem o corpo perfeito, inteiro, embora ainda assim às vezes caia na tentação de desejar retirar um pouco dele (ou colocar) estirado numa maca de hospital. Alterar aquele mesmo corpo são que Deus lhe deu...

Você já agradeceu hoje, a Deus, por ter uma casa para morar? Uma casa com cômodos e privacidade? Uma casa com banheiro? Conheci certa vez um menino que não tinha ânus. Muito pequenino, aguardava sua vez na fila de cirurgia num hospital público e, enquanto isso, sua mãe dava conta da sonda que ele utilizava acoplada ao corpo. Sua casa tem banheiro e você pode utilizá-lo? Já agradeceu por isto?

Os casebres com seus cômodos únicos estão nas ruas sujas e fétidas da cidade. Nas ruas onde não há rede de esgoto, coleta de lixo. Ali se trava a batalha pelo pão de cada dia: os restos são bem divididos entre animais e pessoas, como se fosse tudo uma coisa só. Não há palavras, só grunhidos, gemidos, violência. Você não luta pelo seu pão. Ele está lá, na padaria, esperando, e o máximo de sacrifício que você faz é enfrentar uma fila, se o pão quentinho valer a pena. Agradeceu a Deus pelo pão fresquinho?

Uma ronda policial é suficiente para liquidar pessoas e destruir famílias em um curto espaço de tempo, dependendo do lugar por onde passe. Ficam, então, pelas ruas, os jornais vencidos, as velas acesas, as manchas de sangue e, vez ou outra, um cãozinho aquecendo um braço que não pôde ser coberto. Dependendo do lugar onde se viva, as pessoas atravessam corpos nas ruas para não perderem o trem. Por quantas ruas você já caminhou hoje? Quantas coisas bonitas viu? Sua família está completa em casa, esperando por você? Já agradeceu por isto?

A mão de Deus nos colocou onde estamos. Eu, aqui. Você, aí. Não, não fomos parar em Israel. Lá, as crianças estão nascendo ao som do que poderia ser fogos de artifícios, mas são balas de fuzil. Nascem para a morte. Famílias inteiras nascem para contribuir com as estatísticas de mortos ao final do dia. Seu filho nasceu? Está bem? Você sobreviveu ao dia de hoje? Trabalhou seguramente? Já disse a Deus “obrigado”?

Somos escolhidos, verdadeiramente, todos nós. Eu não sei bem por que alguns são escolhidos para serem colocados naquelas coisas que de casa não têm nada. Não sei por que ainda nascem crianças em Israel... Mas sempre que vejo o noticiário na televisão agradeço a Deus pelo que tenho. Aquilo que, embora em momentos hereges eu julgue ser tão pouco, sei o quanto é valoroso, quando Deus toca meu coração e afasta com propriedade os maus pensamentos: Tenho uma família linda, um filho saudável, perfeito... Tenho emprego, tenho uma casa confortável, tenho luz, tenho água, tenho duas cadelinhas que retirei das ruas, tenho saúde, tenho paz.

Ontem mostrei a Antônio a foto de um menino que devia ter seus seis anos de idade, também. O menino não tinha braços, nem pernas. Deitado num colchão, desenhava num papel com lápis de cor na boca. Um semblante feliz, comum a todos os meninos que desenham... Antônio ficou olhando a foto, estupefato. E enquanto eu via seus olhinhos se entristecerem, agradeci a Deus por ter o corpinho de Antônio inteiro, perfeito, perto de mim. Seu filho é perfeito? Seu filho é saudável? Seu filho está perto de você? E você já agradeceu a Deus por isto?

Do alto do Universo, um Deus avistando a Terra apontou para um endereço quando destinou a você a vida. Não lhe designou morrer jovem, matar seus pais, viciar-se em drogas, molestar seus filhos. Desejou que você crescesse em um lar, que constituísse família, que progredisse, que prosperasse. Deu-lhe talentos, e sentou-se em seu Trono para observar como se daria a multiplicação deles. Você os multiplicou? Já encontrou, ao menos, o talento que lhe foi concedido por Deus? Já agradeceu por eles?

Eu não estava aqui quando amigos dos meus pais morreram pelo sonho da democracia. Também não estava nas torres no dia 11 de setembro de 2000. Não fui um dos 111 mortos no Carandiru, nem fui vítima de qualquer assassino ou estuprador em série, daqueles que aterrorizaram famílias e cidades. Não namorei Lindemberg, nem perdi um filho nas condições em que o menino João Hélio se foi. A mão de Deus me libertou, me liberta todos os dias.

A mão de Deus libertou você, também. Nascemos livres. Você já agradeceu?

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