(Passei a semana toda pensando nelas. Então, resolvi escrever sobre uma Jacira e uma Manoela que, no final das contas, também podem ser eu e você.)
Jacira tem
quarenta e cinco anos, e está preocupada com seu filho. É o caçula de sete. Tem
treze anos de idade, estuda na única escola pública do bairro onde moram.
Jacira cria os filhos sozinha (ela acabou de mandar embora de casa seu atual
companheiro, pai de quatro dos filhos. Ele bebeu demais e ameaçou bater nela. E
Jacira não tolera violência. Ele se foi). Todos moram com ela. O mais velho tem
vinte e cinco e os dois trabalham juntos. Vendem comida congelada. Os outros
cinco, em “escadinha” ajudam, também, mas em casa. As meninas cuidam da rotina
do lar e os meninos andam experimentando um “lava-jato” no quintal. Até que tem
rendido um dinheirinho no final da semana. Os filhos de Jacira são responsáveis
e muito caprichosos. Toda a vizinhança os elogia. Mas o caçula deixou Jacira
preocupada...
Manoela tem
quarenta e cinco anos, é Pedagoga e trabalha como Orientadora Educacional numa
escola pública no bairro vizinho ao de Jacira. E está preocupada com seu único
filho de treze anos de idade, que estuda na escola particular bem próxima de
onde trabalha. Manoela cria seu filho sozinha. Divorciou-se de seu marido ainda
grávida, depois que ele tentou agredi-la fisicamente numa festa. “Encheu a cara”
de bebida e quis aparecer. Foi a única vez. Manoela não tolera violência. E
exigiu o divórcio. Teve seu filho, voltou a trabalhar, e anda tocando as coisas
com o salário que recebe da Prefeitura porque o ex-marido, desde então, pediu
demissão da firma onde trabalhava e nunca mais teve sua carteira de trabalho
assinada, para livrar-se da pensão. O menino estuda pela manhã e faz alguns
cursinhos à tarde: robótica, karatê e inglês. É o que dá para pagar. Manoela
tem hora-extra e sempre consegue um desconto, porque tem muitos amigos
professores. O menino é bom filho e bom vizinho. Mas deixou Manoela preocupada...
O que as
duas mulheres têm em comum? Um filho chamado Gabriel e um telefonema
inesperado: Jacira está sobressaltada até agora porque recebeu uma ligação da
Delegacia do bairro, e Manoela dá voltas na sala de casa sem saber o que fazer,
depois de ter sido convidada a comparecer na escola onde o filho estuda para conversar
com a Psicopedagoga.
Diante do
Delegado de plantão Jacira tenta, entre um soluço e outro, num choro
convulsivo, falar sobre a vida que leva com o Gabriel dela. O Gabriel de
Manoela está sendo composto, através de palavras sem sentido proferidas por uma
Manoela destruída, do outro lado da rua. E o que há em comum – agora mais
ainda! – entre as duas, eu conto aqui, numa fala única, que serve para os dois
Gabriéis:
"Tudo o que
eu faço nesta vida, faço pelo meu filho. Todos os sacrifícios. Acordo cedo para
trabalhar, ele levanta junto. Saímos de casa juntos, e eu o deixo na escola
antes de seguir para o meu trabalho. Gabriel é um garoto bom em casa, quieto,
gosta de televisão e vídeo games, tem poucos amigos na rua. Seus boletins apresentavam
notas boas no ano passado. Nada há de diferente acontecendo na família. Não sei
por que motivo estou aqui."
O Gabriel
de Jacira fora pego brigando na rua, e como estava usando uniforme, logo
identificado. O menino que brigou com ele trazia consigo um estilete e o feriu.
Um corte profundo no rosto. Gabriel já havia estado no Pronto Socorro local,
levou seis pontos. E o Delegado convocou Jacira para poder liberar o menino na
presença de seu responsável.
O Gabriel
de Manoela havia sido retirado de sala de aula depois de dar um soco na
carteira e responder à professora de Educação Física. E o Diretor da escola
achou por bem liberar Gabriel só depois da conversa dela com a Psicopedagoga.
Dois
trajetos diferentes, dois infernos iguais. Jacira retirou a touca descartável
da cabeça e o avental do corpo em milésimos de segundos, quando recebeu a
ligação. A Delegacia, distante dois quarteirões de casa, parecia ficar em outro
país. Jacira correu segurando a bolsa com os poucos pertences, o celular e os
documentos.
Manoela
saiu de casa afobada, e esqueceu a bolsa em casa. Chegou à escola em tempo
recorde, acelerando os passos com a velocidade do seu batimento cardíaco. A
escola, tão próxima, pareceu-lhe ficar em outro país.
Os corações
acelerados acalmaram-se no instante em que as mães puderam ver seus filhos.
Conferiram-lhes o corpo todo, quase a respiração. Um Gabriel com o rosto
machucado, o outro com uma ferida na mão direita.
Gabriel de
Jacira brigou na rua, cansado que estava de ouvir as ameaças de um colega de
classe. Ninguém ouvia, só ele. Sempre que o menino passava por ele, implicava.
Chamava Gabriel de tudo quanto é nome. Mas a gota d’água foi quando faltou com
o respeito à sua mãe. Gabriel combinou a briga do lado de fora da escola,
quando o menino o incitou, dizendo que ele era quietinho porque era filho da “cozinheirazinha”
do bairro.
Gabriel de
Manoela socou a mesa cansado das aulas de Educação Física. Mas não só por isso:
havia dito que não queria jogar queimada – de novo! – e a Professora Lúcia
ameaçara chamar a sua mãe para resolver o problema.
Jacira e
Manoela criam seus Gabriéis para serem homens de verdade na vida. Para serem homens
de bem, para terem uma profissão que lhes garanta um futuro melhor, condições
melhores de vida. Jacira não quer seu filho na cozinha de casa, junto com ela e
seu mais velho, que não prosseguiu com os estudos. Manoela não quer que o seu
filho seja Professor. Quer algo melhor. Já sabe a condição em que vivem em casa.
Criam seus
filhos imaginando que acertam em cada passo que dão. Criam com amor, com
verdade, com limites. Criam sonhando com a perfeição, e este é um pecado comum
a todas as mães.
Hoje vim
até aqui para escrever um desconforto que venho tendo há uns dias: o de
encontrar ao meu redor o mesmo desconforto em outras mães. Queremos um mundo
melhor para os nossos filhos, e nesse mundo imaginamos que eles serão o que há
de melhor, também. No entanto, temos filhos limitados, e tão normalmente
diferentes!
Antônio,
meu filho, meu “Gabriel”, ouve todos os dias do pai dele a frase “cuida da sua
mãe”, quando eles se despedem... Antônio não gosta de queimada, e ficou com
média 6 na disciplina de Educação Física. Nas outras disciplinas, as notas
variaram entre 9 e 10. E tudo o que eu pude dizer a ele, depois de ter estado
com algumas Jaciras e Manoelas essa semana, foi que faça as aulas, mesmo sem
gostar do jogo.
É a lei da
vida. Senão a gente para na Delegacia ou na Sala da Psicopedagoga.