quinta-feira, 30 de maio de 2013

Jacira e Manoela

(Passei a semana toda pensando nelas. Então, resolvi escrever sobre uma Jacira e uma Manoela que, no final das contas, também podem ser eu e você.)


Jacira tem quarenta e cinco anos, e está preocupada com seu filho. É o caçula de sete. Tem treze anos de idade, estuda na única escola pública do bairro onde moram. Jacira cria os filhos sozinha (ela acabou de mandar embora de casa seu atual companheiro, pai de quatro dos filhos. Ele bebeu demais e ameaçou bater nela. E Jacira não tolera violência. Ele se foi). Todos moram com ela. O mais velho tem vinte e cinco e os dois trabalham juntos. Vendem comida congelada. Os outros cinco, em “escadinha” ajudam, também, mas em casa. As meninas cuidam da rotina do lar e os meninos andam experimentando um “lava-jato” no quintal. Até que tem rendido um dinheirinho no final da semana. Os filhos de Jacira são responsáveis e muito caprichosos. Toda a vizinhança os elogia. Mas o caçula deixou Jacira preocupada...

Manoela tem quarenta e cinco anos, é Pedagoga e trabalha como Orientadora Educacional numa escola pública no bairro vizinho ao de Jacira. E está preocupada com seu único filho de treze anos de idade, que estuda na escola particular bem próxima de onde trabalha. Manoela cria seu filho sozinha. Divorciou-se de seu marido ainda grávida, depois que ele tentou agredi-la fisicamente numa festa. “Encheu a cara” de bebida e quis aparecer. Foi a única vez. Manoela não tolera violência. E exigiu o divórcio. Teve seu filho, voltou a trabalhar, e anda tocando as coisas com o salário que recebe da Prefeitura porque o ex-marido, desde então, pediu demissão da firma onde trabalhava e nunca mais teve sua carteira de trabalho assinada, para livrar-se da pensão. O menino estuda pela manhã e faz alguns cursinhos à tarde: robótica, karatê e inglês. É o que dá para pagar. Manoela tem hora-extra e sempre consegue um desconto, porque tem muitos amigos professores. O menino é bom filho e bom vizinho. Mas deixou Manoela preocupada...

O que as duas mulheres têm em comum? Um filho chamado Gabriel e um telefonema inesperado: Jacira está sobressaltada até agora porque recebeu uma ligação da Delegacia do bairro, e Manoela dá voltas na sala de casa sem saber o que fazer, depois de ter sido convidada a comparecer na escola onde o filho estuda para conversar com a Psicopedagoga.

Diante do Delegado de plantão Jacira tenta, entre um soluço e outro, num choro convulsivo, falar sobre a vida que leva com o Gabriel dela. O Gabriel de Manoela está sendo composto, através de palavras sem sentido proferidas por uma Manoela destruída, do outro lado da rua. E o que há em comum – agora mais ainda! – entre as duas, eu conto aqui, numa fala única, que serve para os dois Gabriéis:

"Tudo o que eu faço nesta vida, faço pelo meu filho. Todos os sacrifícios. Acordo cedo para trabalhar, ele levanta junto. Saímos de casa juntos, e eu o deixo na escola antes de seguir para o meu trabalho. Gabriel é um garoto bom em casa, quieto, gosta de televisão e vídeo games, tem poucos amigos na rua. Seus boletins apresentavam notas boas no ano passado. Nada há de diferente acontecendo na família. Não sei por que motivo estou aqui."

O Gabriel de Jacira fora pego brigando na rua, e como estava usando uniforme, logo identificado. O menino que brigou com ele trazia consigo um estilete e o feriu. Um corte profundo no rosto. Gabriel já havia estado no Pronto Socorro local, levou seis pontos. E o Delegado convocou Jacira para poder liberar o menino na presença de seu responsável.

O Gabriel de Manoela havia sido retirado de sala de aula depois de dar um soco na carteira e responder à professora de Educação Física. E o Diretor da escola achou por bem liberar Gabriel só depois da conversa dela com a Psicopedagoga.

Dois trajetos diferentes, dois infernos iguais. Jacira retirou a touca descartável da cabeça e o avental do corpo em milésimos de segundos, quando recebeu a ligação. A Delegacia, distante dois quarteirões de casa, parecia ficar em outro país. Jacira correu segurando a bolsa com os poucos pertences, o celular e os documentos.

Manoela saiu de casa afobada, e esqueceu a bolsa em casa. Chegou à escola em tempo recorde, acelerando os passos com a velocidade do seu batimento cardíaco. A escola, tão próxima, pareceu-lhe ficar em outro país.

Os corações acelerados acalmaram-se no instante em que as mães puderam ver seus filhos. Conferiram-lhes o corpo todo, quase a respiração. Um Gabriel com o rosto machucado, o outro com uma ferida na mão direita.

Gabriel de Jacira brigou na rua, cansado que estava de ouvir as ameaças de um colega de classe. Ninguém ouvia, só ele. Sempre que o menino passava por ele, implicava. Chamava Gabriel de tudo quanto é nome. Mas a gota d’água foi quando faltou com o respeito à sua mãe. Gabriel combinou a briga do lado de fora da escola, quando o menino o incitou, dizendo que ele era quietinho porque era filho da “cozinheirazinha” do bairro.

Gabriel de Manoela socou a mesa cansado das aulas de Educação Física. Mas não só por isso: havia dito que não queria jogar queimada – de novo! – e a Professora Lúcia ameaçara chamar a sua mãe para resolver o problema.

Jacira e Manoela criam seus Gabriéis para serem homens de verdade na vida. Para serem homens de bem, para terem uma profissão que lhes garanta um futuro melhor, condições melhores de vida. Jacira não quer seu filho na cozinha de casa, junto com ela e seu mais velho, que não prosseguiu com os estudos. Manoela não quer que o seu filho seja Professor. Quer algo melhor. Já sabe a condição em que vivem em casa.

Criam seus filhos imaginando que acertam em cada passo que dão. Criam com amor, com verdade, com limites. Criam sonhando com a perfeição, e este é um pecado comum a todas as mães.

Hoje vim até aqui para escrever um desconforto que venho tendo há uns dias: o de encontrar ao meu redor o mesmo desconforto em outras mães. Queremos um mundo melhor para os nossos filhos, e nesse mundo imaginamos que eles serão o que há de melhor, também. No entanto, temos filhos limitados, e tão normalmente diferentes!

Antônio, meu filho, meu “Gabriel”, ouve todos os dias do pai dele a frase “cuida da sua mãe”, quando eles se despedem... Antônio não gosta de queimada, e ficou com média 6 na disciplina de Educação Física. Nas outras disciplinas, as notas variaram entre 9 e 10. E tudo o que eu pude dizer a ele, depois de ter estado com algumas Jaciras e Manoelas essa semana, foi que faça as aulas, mesmo sem gostar do jogo.


É a lei da vida. Senão a gente para na Delegacia ou na Sala da Psicopedagoga.

3 comentários:

  1. KKKKKKKKKKKKKKKKKKKk......Karla Pontes....vc é demais....engraçado nos passamos pela mesma situação só que em idades diferentes e situações diferentes....mas tudo nos leva a essa frase...."É a LEI da vida".

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