terça-feira, 1 de maio de 2012

Para voltar do feriadão

(Passei meus dias de feriadão pensando sobre a Escola. Em particular, sobre a Educação de Jovens e Adultos... E escrevi sobre uma triste conclusão a que cheguei: o ensino regular diurno fabrica a clientela da noite. Que tal refletirem sobre isto, junto comigo, antes que o feriadão acabe?)


Andei pensando em muitas coisas neste feriadão... E ainda não consegui decifrar o enigma do “público, sim, desde que me convenha...” Mas cheguei à conclusão de que não seriam quatro dias em casa que me fariam desvendar este segredo e, aí, desisti de fazê-lo, já que escrever sobre o assunto aliviou-me um pouco o coração.
Então vim aqui para escrever sobre a Educação de Jovens e Adultos.
Eu fiz as contas: estou em Iguaba Grande há doze anos. O Ensino Fundamental tem a duração de nove. E diante de uma demanda de tantos alunos – que observando as pastas dos arquivos escolares chego a pensar que são os mesmos – me pergunto se não estou enganada quando penso que já deveria ter havido uma considerável redução na procura por matrículas para esta modalidade...
Quando cheguei a Iguaba e comecei a trabalhar, a rede pública oferecia o ensino noturno em quase todas as suas escolas. Turmas cheias, muita movimentação, reuniões com os professores pela manhã, planejamento, capacitação, etc. De lá pra cá, infelizmente, os objetivos foram mudando e chegamos ao ano de 2009 com uma única escola a oferecer a oportunidade para todos os cidadãos da cidade. Isto significou – eu nem precisei ficar aqui para constatar – um esvaziamento de alunos ao longo do tempo. Passados doze anos, ainda falta muita gente dar conta de um Ensino Fundamental que duraria nove e, em caso de semestralidade, apenas quatro.
O que houve? O que está havendo com nossos jovens e adultos que optam por ficarem sem o diploma a terem que frequentar as salas de aula? O que está havendo com nossa escola, a escola tão venerada por nossos pais?
Alguma coisa destoa quando vivemos num mundo onde só tem valor quem estuda e tantos dos nossos meninos chegam à juventude sem seu histórico escolar concluído. Aí, fui parar pra pensar nisto nestes quatro dias de descanso. Fui olhar pra trás, voltar ao tempo, pensar no que vi, no que vivi. E não gostei do resultado da minha pesquisa pessoal.
Eu vi que a escola anda por aí reprovando em massa os meninos (e agora as meninas, também) “dispersos”, “insuportáveis”, “desatentos”, “debochados” etc., sem saber muito bem se eles sabem ou não a matéria lecionada. Porque professores os retiram de sala no primeiro movimento “suspeito”, para que o resto dos quarenta e cinco minutos de aula siga bem, sem surpresas.
Eu vi a escola, inclusive, dando presença nos diários de classe para os alunos postos para fora de sala. Registrada a presença, podem sair, os alunos, à vontade. Há até quem os convide antes do “bom dia”. Então, garantida a frequência no final do ano letivo, não há reprovação por faltas: os alunos perdem o ano por terem muitas características, mas não por infrequência ou por desconhecerem o que tinham que ter aprendido.
Eu vi a escola duvidando do resultado de alunos ao final do bimestre: diante de resultados de cor azul – para surpresa dos professores! – as afirmações, como juras de pé junto, de que “colaram, só pode ser!!!”... Eu vi uns professores surpresos com a média “azul” de seus próprios alunos: numa viagem de ônibus para a escola num dia de conselho de classe final, a professora virou-se para a outra e disse, espantada: “Sabe quem passou? Juan! Olha, eu podia jurar que ele iria repetir o ano. Mas fiz as contas mais de mil vezes e ele conseguiu ficar com 5,0 na média!
Juan livrou-se, por pouco, de ser um candidato a aluno da EJA. É o que a escola regular faz, todos os dias, com suas aulas chatas, descompromissadas e descontextualizadas: convida – quase como coação – os alunos a reagirem com seus corpos falantes e, a partir daí, expulsa-os, reprova-os, fadando cada um deles a retornar alguns anos depois, procurando por vaga à noite.
E não é o que fazem? Diante de uma sociedade que lhes impõe a obrigação de ter em mãos um papel legitimando uma escolarização, retornam muitas vezes à mesma escola de onde foram expulsos (leia-se excluídos, desprezados, expostos, minimizados...) para retomar os estudos de onde pararam algum tempo atrás. Eles retornam confusos, donos de uma estranheza, porque o tempo passou e seus amigos, aqueles que souberam driblar as façanhas da escola, estão fora dela já, cuidando de suas vidas e lembrando-se – e utilizando-se! – de muito pouco do que aprenderam lá dentro. Aí, aquela “peste” de menino volta homem feito esperando que não ele, mas que sua escola seja outra.
Nossa escola é exatamente a mesma, de dia e à noite. Eu não vou procurar porque não quero encontrar, mas grita em mim a dúvida de que não haja uma Fifi (a foca de Fábio) no caderno de um aluno do 1º ano de escolaridade, tenha ele seis ou sessenta anos. Não vou procurar Fifi, porque palhaços eu já vi aos montes, em folhas mimeografadas por professores que lecionavam nos dois turnos e aproveitavam a “matriz” para o noturno, também. Alguém aí já passou por isto?
Então, o homem feito renova sua matrícula (responsável que já é por si mesmo) na secretaria da escola, onde encontra – sempre! – uma ex-professora, agora readaptada, que o reconhece e conta para todo mundo, inclusive pra ele, todas as coisas que lembra tê-lo visto fazendo. Pronto! Ali está “a peste” de volta. Ao percorrer o caminho até chegar à sala de aula observa o prédio, nada diferente. Com um olhar minucioso quase vê seu nome cravado na madeira da carteira onde se senta. Que coincidência! Seu corpo falara durante a aula de Ciências há tanto tempo atrás, em que a professora ensinou que o cérebro era o maior osso do corpo humano. A aula maçante levou seu corpo a fazer melhor, com sua gilete: cravar o nome na carteira. A professora não viu, porque dormiu depois que exigiu que os alunos fizessem um silêncio impossível de se fazer quando se tem quatorze anos de idade.
O homem disse “boa noite” e procurou um lugar distante para se sentar. A aula seguiu como se nada tivesse acontecido. Ninguém lhe perguntou o nome, nada foi questionado sobre sua chegada, nada. Do professor da hora, um único aviso: “Aqui é lugar para estudar, não é lugar para bagunça. Se não estão a fim de aprender, podem sair, vocês são adultos, são responsáveis. Aqui não tem mais criancinha, não.
Este homem não fica por muito tempo nessa escola. Como seu professor também não ficou. Apenas está presente, fisicamente, por conta de garantir seu salário ao final do mês. Mas já não está mais lá, se é que algum dia esteve. E lutar por uma educação de jovens e adultos, e atrever-se em pensar em qualidade de ensino, requer a retirada urgente desse tipo de gente que insiste em preencher no espaço reservado à profissão em formulários a palavra PROFESSOR sem sequer ter noção do que é ser um. É por isto que anos passam e a EJA não resolve o problema do analfabetismo, da desescolarização dos jovens, da distorção idade/série. Não resolverá nunca. Porque se fabrica pela manhã a clientela da noite, e cada vez mais. Porque a doença chamada desistência que acometeu alguns professores vitimou em larga escala toda a comunidade escolar, inclusive diretores. E ninguém quer abrir os olhos para isto.
Hoje os jovens optam por viverem fora da escola porque são aceitos nos grupos onde ninguém precisa dela. E infelizmente, isto é fato.
E infelizmente, também, quem “ganha” esta briga é o professor. Há doze anos atrás entrava numa sala para dar aulas para uma turma de quarenta alunos. Hoje, há vinte lá. E expulsando durante o dia os alunos que não resistem às suas aulas patéticas, garante o ganha-pão do semestre que vem: alunos para a EJA. E segue trabalhando assim, a despeito das vidas que sacrifica enquanto insiste no paradoxo de dizer-se professor.
Eis minha proposta de reflexão, nesta volta de feriado prolongado. Escrevo como que pedindo perdão a Deus se por um dia fui um tipo de professor deste, o que é possível. Humano é atender aos apelos do cansaço, e tropeçar, algumas vezes. Mas fazer a vida do outro ser tropeço e queda constante é pecado. É sério. E havemos que pensar nisto. Sempre. Enquanto vivermos. Enquanto dissermos que somos professores.

6 comentários:

  1. Não preciso dizer nada, pois você já disse tudo... tudo que digo, há um pouco mais de tempo que você. Várias vezes anunciei, coloquei a boca no trombone para gritar o "educacídio" anunciado, que se configurava aos olhos de quem quisesse ver. E só poderia ver, quem quisesse, quem tivesse um olhar mais aguçado, um pouco mais estudado, mais sensível às coisas da educação, quem tivesse uma vontade "paulofreireana".
    Desculpe-me, mas cabe aqui, pois o contexto pede, um registro de triste lembrança para mim. Não citarei nomes para resguardar uma postura ética, mas que dá vontade, não tenha dúvida. Certa época (uns 4 anos aproximadamente) a SEME Cabo Frio convidou-me para colaborar com o(a)s companheiro(a)s naquele período de aperfeiçoamento em serviço, normalmente no início do ano letivo, com uma oficina sobre a Pedagogia dos Projetos. Preparei todo o material e o 'ponta-pé' inicial (a provocação para não perder o costume), era um texto (fragmento de um relatório de pesquisa de Doutoramento em Educação, que tematizava a EJA) com um profundo embasamento no Mestre Paulo Freire. A sala estava lotada de colegas e entre eles a maioria de ex-alunos, que me deram a honra de socializar uma sala de aula nos 10 anos em que trabalhei na FERLAGOS. Contava também com um colega de História muito conhecido na Rede Municipal. Quando o dito cujo pegou o texto, passou os olhos no título, levantou-se, peremptoriamente, estupidamente, dizendo que não participaria de uma atividade, que começaria com um texto sobre um tema, que iria exaltar a essência do antigo MOBRAL, que era "ensinar adultos a 'desenhar' o próprio nome para votar". Perdeu uma excelente oportunidade de 'matar' a ignorância, que o consome. Não perdemos nada com a sua ausência. Muito ao contrário.
    E assim, minha amiga, como vez ou outra cito em alguns de meus textos, "os cães ladram e a caravana passa" e as nossas escolas continuam as mesmas. É possível que, se tivermos a honra de ministrar nossas aulas ou de exercer nossas funções de pedagogos em escolas que estudamos, possamos, assim como "o homem feito", seu personagem, que, voltando à escola, "ao percorrer o caminho até chegar à sala de aula observa o prédio, nada diferente. Com um olhar minucioso quase vê o seu nome cravado na madeira da carteira onde se senta". Nós também, caríssima companheira Karla, nós também corremos esse risco, se voltarmos, como profissionais, para as escolas onde estudamos. "Tudo como antes no quartel de Abrantes!"
    Bom domingo e que a Paz esteja contigo! Beijos!

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  2. Tenho visto propostas de mudanças a muito tempo. Queixas iguais (indisciplina, falta de apoio familiar, falta de preparo do professor) a muito tempo. Mas não vejo propostas efetivamente possíveis de serem aplicadas, que busquem mudanças eficazes. Sinto-me num vai e vem constante, tocando sempre esta mesma música monocórdia que não traz nada de volta. Quando será que vamos nos sentar e de fato levantar propostas. Certas ou erradas, não sei. Mas precisamos de propostas. Vejo em minha própria família pessoas que não concluíram nem o fundamental e que ganham mais que eu e que as vezes me olham com estranheza e seus olhos dizem: _" Precisou de faculdade e pós-graduação pra isso? Pra viver ganhando mal e com essa constante insatisfação?" Não vou ceder nunca. Mas quero mais. Quero parar de discutir e fazer. Mas quando não se sabe EXATAMENTE onde se quer chegar, qualquer caminho serve? Não quero mais qualquer caminho.

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  3. Querida, irrequieta e 'estrellíssima' companheira Janaína, postei em algum dos escritos da nossa amiga Karla Pontes, um texto que usei no 1º CoC junto aos (às) companheiro(a) das EMs Profª Márcia Francesconi Pereira e Alfredo Castro, que tinha como tema o reconhecimento de um elefante por alguns cegos. Cada um tinha a sua concepção do que era o animal, quando tocava uma das partes do mesmo sem ter noção do paquiderme como um todo. Assim é a educação, onde cada professor tem a sua concepção, acredita nela e não abre mão, para crer na do outro, mesmo sabendo que este tem uma experiência considerável, um respaldo teórico, uma sustentação acadêmica inquestionáveis. Infeliz daquele(a) que não enxerga possibilidades de trocar experiência, de aprender com o outro. Enquanto isso não acontece, será impossível, permita-me fazer minhas algumas de suas palavras, "nos sentar e de fato levantar propostas. Certas ou erradas, não sei. Mas precisamos de propostas." Você vai um pouquinho além, quando afirma "Quero parar de discutir e fazer". Só que quem discute, é meia dúzia de, como costumo brincar, sete ou oito, num universo de 30, 40 colegas nas nossas escolas. O fazer de 7, 8 colegas é abafado pelos 23, 32 outros que estão satisfeitos com as mesmices pedagógicas. No final do mês, o salário desses é igual ao nosso.
    Sei que ao final da leitura desta minha ponderação, você questionará: "você, amigo Francisco, está me sugestionando a ficar quietinha no meu canto, esperando a aposentadoria chegar?"
    Não, minha revoltada amiga, estou sugerindo o mesmo que a companheira Karla Pontes, quando nos provoca (gostou Karlinha?) a tecer manhãs como os galos de João Cabral de Melo Neto. Não somos somente eu, você, Karla... somos mais, muito mais. Ainda pouco a Karla me viu conversando com um amigo (Daniel Gomes, lá do Alfredo Castro) e percebeu que o mesmo é, também, um provável 'tecedor de manhãs' como nós. Quantos outros Daniel você e a Karla não conhecem por essas escolas a fora?
    Eu também não quero qualquer caminho como você!
    beijos!

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    1. Os comentários de vocês amanhecem o meu dia!
      Percebem o mesmo que eu? Que, de repente nos tornamos rede? Percebem que algo está apontando para o fato de que podemos, sim, realizar nossos sonhos? Ou eu e Janaina não estamos diante do homem que está à frente do SEPE? Uau! Mal posso acreditar que de tanto querer voar, virei ave, virei galo! Quem ganha com isto? Nossos meninos e meninas! Feliz demais! Janaina, se quer saber tenho mil e uma propostas! :)

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  4. Não é por acaso que estamos juntos tecendo nossas ideias (não me conformo com a queda deste acento, fica uma idéia faltando alguma coisa. Está vendo como somos resistentes à mudanças? KKKKK)
    Gosto muito de vocês.
    Recebi este ano uma professora inexperiente,Cada brilho em seu olhar, cada vez que ela repete em classe um ensinamento novo, cada pesquisa que sugiro e ela busca ávidamente ampliar seus conhecimentos, a cada erro que ela comete e sofre e arranca força em si para refazer e acertar. Ela tem sido uma aluna maravilhosa, uma professora brilhante e me disse essa semana que estamos construindo nossos passos juntas. Me deu razão para continuar e terminar o ano. Professora Maria Lúcia Valentim, pronta pra construir a escola que sonhamos. Ainda não acha que sabe, ainda não se sente segura e daí está aberta. Espero que fique assim pra sempre, assim como eu ainda me sinto assim. Ela tem no olho uma coisa que diploma nenhum dá: amor pelo humano e brilho de aprender a aprender. Parabéns as Maria Lúcia, aos Daniel Gomes e a tantos outros 7 ou 8 que tivemos a glória de conhecer e aprender com eles.
    Te gost'amo muito Francisco Carlos de Mattos e Karla Pontes. Chegaram pra mim em um momento bem importante do meu caminho. Beijos.

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  5. Muito legal ouvir essas coisas de você, Estrellíssima! Bom saber que ainda temos Marias Lúcias sem vícios e que querem aprender, que sabem da importância em aprender. Que bom, também, saber dos Daniel Gomes e de tantos outro(a)s tecedores de manhãs. Excelente saber que você e a Karla existem.

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