quarta-feira, 30 de maio de 2012

A porta estreita

(Diante de tantos convites à felicidade, diante deste mundo que nos rodeia, resolvi escrever sobre a pintura de um quadro antigo que via na casa da minha avó.)


Quando eu era pequena e ia visitar a minha avó saía de sua casa sempre impressionada com um quadro que havia na parede da sala. Antigamente, os quadros eram pendurados nas paredes com um barbantezinho que lhes proporcionava um ângulo diferente: ficavam quase em diagonal, pendendo sobre nossas cabeças de criança.  Alguns causavam medo!
No quadro a que me refiro aparecia pintada uma estradinha, que bifurcava em seu final, dando origem a dois caminhos diferentes: um, com uma porta larga, bonita, que anunciava uma estrada cheia de animadas pessoas, movimentos sugerindo músicas, muita fartura de alimentos, e uma alegria aparente nos rostos robustos e corados. O outro caminho iniciava com uma porta feia e extremamente estreita... Pouca gente, silêncio, solidão. Nada sedutora!
Um dia minha mãe explicou-me o que o quadro representava: A porta bonita – de fácil acesso – e convidativa, era a porta do inferno. A estreita, por onde poucos passavam, era a porta do céu. E com aquele jeito de mãe, que agora só entendo porque sou também, foi me dizendo que nem sempre o caminho mais bonito a seguir é o que agrada ao coração de Deus.
Enquanto fui crescendo minha mãe reportou-se àquele quadro com suas ameaçadoras palavras. E muitas coisas que eu quis experimentar na minha adolescência viraram “porta larga” na minha vida: sair com amigos à noite, namorar antes dos quinze anos, ficar na calçada da escola quando acabava a aula, ir a festas de aniversários de amigos sozinha... Rapidamente ela me convencia (ou me calava) com seus argumentos de que o final daquela história que eu queria ensaiar seria um inferno bem vermelho...
A cena, a pintura, jamais deixou meus pensamentos. Pouco se vê, hoje em dia. Às vezes encontro coisa semelhante, mas igual aquele quadro “caindo” da casa de vovó, nunca mais. Mas embora lembrar-me dele cause-me certo desconforto, acalenta meu coração a lembrança dos minutos em que minha mãe foi só minha, explicando-me o sentido da gravura.
Hoje estou velha demais. À beira de completar quarenta e quatro anos, vejo a profecia do quadro se cumprir, com uma pequena – mas preocupante – diferença: a porta que dá acesso ao céu anda ficando ainda mais estreita, enquanto a outra, a concorrente, estende-se a cada dia, com seus atrativos formidáveis! E atormenta-me o fato de estar neste mundo, nesta estrada que está quase bifurcando, e que precede à opção da escolha.
Dia desses, dirigindo, li uma frase num para-choque de caminhão que mudou muito dos meus hábitos. Dizia assim: “Estou tão perto de Deus quanto escolhi estar”.
Estou tão perto de Deus quanto escolhi estar. Repeti muitas vezes ao lê-la. Que responsabilidade! Caramba, foi quase um puxão de orelhas!
Aqueles convites maravilhosos no caminho largo do quadro afastavam as pessoas de Deus. E hoje sofro muito quando vejo este mundo – que não é dEle, sabem bem os que nEle creem – oferecendo essas vaidades instantâneas a pessoas com espírito vazio, que se deixam levar pelas promessas fúteis de uma alegria passageira. E tanta gente segue por aí, sem saber sequer onde chegar, vivendo o minuto com essa filosofia de “carpe diem”, como se o mundo fosse acabar amanhã e todos tivessem direito a realizar suas vontades...
Temos, sim, este direito, e Deus é tão bom que nos concede. Mas todas as escolhas implicam renúncias. Todos os atos implicam consequências. E Deus é muito, muito bom, mas, sobretudo, fiel.
A porta estreita está lá, pintada naquele quadro que hoje faz presença na sala de uma tia minha. Eu não a visito mais, nós nos perdemos. E ele deve estar lá, educando a nova geração da família. Tomara! Tudo que conquistei até hoje foi com muita dificuldade. Já escrevi por aqui sobre alguns obstáculos na minha vida. Nada, no entanto, perto de muita gente que passou coisa pior do que passei. Mas louvo a Deus por cada problema que tive que enfrentar na vida. Os desafetos, o cansaço do trabalho, a juventude “aprisionada”, os nãos – muitos! – que ouvi dos meus pais, o dinheiro – sempre pouco – para passar o mês, os ônibus superlotados, as bolsas pesadas com os cadernos das crianças, as madrugadas em claro para fazer os trabalhos da faculdade, tanta coisa de que me orgulho!
Meu orgulho é ter uma história de sofrimentos pra contar. Porque com cada um deles eu garanti um passo a frente a caminho da porta estreita, mesmo que com atitudes humanas demais tenha dado dez para trás. Na verdade, acho – com a pretensão de quem ousa sentir-se uma filha de Deus – que Ele me escolheu desde o dia em que vovó pendurou o quadro na parede. Já na ideia de vovó Deus estava presente. E eu escolhi estar perto dele desde que atentei para aquela figura. Sempre estive curiosa por saber o que havia por detrás daquela portinha tão humilde. Porque, apesar de nada atraente, predizia uma paz tão grande como a que sinto neste momento em que escrevo, só de me lembrar... Um tom azulado... Matizes perfeitas...
Quero conhecer o céu. Preciso ser abençoada pelo sacrifício de lembrar-me, diariamente, que nada daquilo que vejo em primeiro plano neste mundo fará com que eu conheça o lugar onde está Deus: as falcatruas, os desmandes, as mentiras, as maldades, tampouco as felicidades fugazes, os sorrisos loucos, as alucinações...
Diante do apelo incansável da mídia e similares insisto na porta estreita. Ainda tenho longo caminho a percorrer, estou consciente disto. E tropeçarei muitas vezes, certamente. Mas quero viver de modo a ter explicações a dar a Antônio quando ele perceber a gravura, porque uma hora vai acontecer com ele, sei. Porque lembro das palavras assustadoras da minha mãe, sim, mas o que ela não me disse naquele instante enquanto olhávamos o quadro juntas mostrou-me com seu exemplo de vida. E aprendi, graças a Deus.
Hoje sei que não valeria a pena ter ficado na calçada da escola. Sei o que aconteceu com as meninas que ficavam lá, naquele tempo. Sei que o melhor mesmo é esperar os quinze anos pra começar a namorar. Sei que foram importantes os nãos que ouvi dos meus pais. Nossos pais nos ensinam o caminho da porta estreita. Deus abençoe nossos pais por isto!

4 comentários:

  1. Parabéns mais uma vez...também sinto muito orgulho de meus sacrificios da juventude, e do muito que ainda tenho que passar, admirações Professora Karla.

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  2. A cada dia fico mais maravilhada com suas palavras, a sabedoria o cuidado com cada palavra. Verdadeiramente os pais tem um papel fundamental em nossa vida!
    Porque cometeu este deslize quando escreveu? "Hoje estou velha demais."
    Não é que estamos ficando velhos,apenas amadurecemos com o tempo; aprendemos a nos valorizar mais, a nos cuidar, e principalmente valorizar as pessoas que nos valorizam. Com o passar do tempo nossas prioridades na vida vão mudando...

    "A dádiva do tempo é nos fazer perceber que amadurecimento não significa idade, mas sim, acúmulo de sorrisos, que passaram a existir depois de muitas lágrimas derramadas."
    Bruno Raphael

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    1. Obrigada, Débora! Deixe-me dizer a você que não há deslize quando confesso estar velha demais. É tempo demais, sim, para quem tem uma criança de apenas seis anos em casa... E, por outro lado, orgulho-me da vida que levei até agora, portanto, dos quarenta e quatro anos que tenho. Necessito, agora, é que Deus orgulhe-se disto também. Será? Rs. Bjs.

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