sábado, 23 de junho de 2012

Entre viver e esperar as provas do bimestre


(Uma mulher ameaçada de morte quer sair da cidade, mas não pode. É que está chegando o fim do bimestre e seus filhos têm provas nas escolas.)



Uma mulher é ameaçada de morte. Mãe de quatro filhos, procura as escolas onde as crianças estudam para solicitar a transferência delas. Ela quer sair da cidade.
São duas as escolas. Da primeira, sai aliviada: a Diretora garantiu-lhe adiantar as provas de segundo bimestre para sua filha mais nova, que cursa o 1º ano de escolaridade. A segunda, onde estão os outros três, ela deixa um tanto preocupada, pois a Diretora lhe disse que os meninos só começarão a fazer as provas na semana de avaliação, que começa daqui a oito dias. E que só poderão transferir-se, no prazo que ela deseja, se não ficarem em recuperação.
Essa mãe conversou comigo sobre isto, e nem se deu conta de como suas palavras afetaram-me como sova bem dada...
Eu fiquei lá, ouvindo suas palavras. Gente simples, olhar cabisbaixo, autoestima inexistente. Um desespero inibia seus movimentos, ao mesmo tempo em que se revelava em todo o seu modo de agir. Ela estava perdida. Mas soube até onde caminhar. Tinha dúvidas, precisava ouvir de alguém que aquelas respostas que ouvira nas escolas onde confiara seus quatro filhos eram as respostas certas numa situação como a dela.
Ao ouvir a mulher, senti vergonha. Medi as palavras, contive-me, temerosa de que na sua inteligência – todos têm alguma – ela percebesse o meu mal-estar diante do que me dissera. E observando sua boca se mexendo freneticamente, embolando-se em palavras que já nem valiam mais a pena serem ditas, deixei a mulher falar e comecei a pensar, cá com meus botões...
Envergonhei-me da ação da primeira escola. E quis tentar visualizar uma equipe técnico-pedagógico-administrativa atendendo a uma mãe em estado de sofreguidão e tendo a dizer, apenas, que “adiantará as provinhas da menina”. Não há outro meio de se avaliar. Ninguém consegue imaginar que um aluno possa deixar a escola e levar, no seu histórico escolar, uma nota que não tenha sido resultado da correção de um papel chamado prova. E naquela primeira escola eles persuadiram a mulher tão capciosamente que ela saiu aliviada de lá.
Reagi com semelhante vergonha à ação da segunda escola. Diante de uma mãe com sua vida ameaçada, apresentou-lhe o “calendário de provas do segundo bimestre” e, ainda pior do que isto, mostrou-lhe também o “calendário das provas de recuperação do segundo bimestre”, advertindo-a de que haveria a possibilidade de um de seus filhos precisar dele...
Após ouvir o relato da mulher – e simultaneamente ter viajado em meus pensamentos – quis traduzir para ela o que as escolas lhe haviam dito: “Mãezinha, a senhora tem que pedir para o moço que quer lhe matar, para esperar que seus filhos façam todas as provas, senão, vai ficar difícil!...” Mas meu compromisso com a educação não me deixou fazê-lo. E calei-me, mais uma vez. Mas o fiz em respeito a ela, porque nas circunstâncias em que o nosso encontro se deu, de nada adiantaria eu agravar as coisas dizendo-lhe a cruel verdade das falas ouvidas nas duas escolas.
Meu Deus, quando isto vai acabar? Quando é que poderemos viver livremente, avaliando alunos pelo crescimento que vão tendo ao longo do caminho, sem estancar as coisas em datas consolidadas mês a mês, a despeito da vida que cada um leva?
Até quando precisaremos de um papel com respostas às perguntas que escolhemos fazer e que julgamos determinantes na aprovação ou retenção de um aluno para dar-lhe o veredito?
O que há de desumano entre as paredes das escolas, que reforça a pais e mães – para além de a seus alunos – a ideia de que são obrigados a viverem conforme as regras da escola, e não o contrário? Quem está a serviço de quem?
Saber de um velório sentido no cemitério da cidade, onde se testemunhou uma mãe morta com um tiro na cabeça e quatro menores chorando ao redor do corpo, desesperados, causaria algum desconforto nas escolas? Certamente, ninguém pensou na gravidade do caso.
São os pais que indicam a forma como a escola caminha. É assim que penso. A comunidade é que dá o tom. O calendário escolar serve ao entorno. As mudanças, os imprevistos, fazem parte do contexto, e são perfeitamente permitidos. Nesse sentido, como não há previsões para ameaças de morte, a escola tem que se mobilizar e se reestruturar, se for o caso, quando algo similar acontece.
Mas o que vi foi a incompetência. E ver colegas de profissão agirem num profundo desrespeito com a vida do seu semelhante causou-me acanhamento.
Todo dia é um recomeço. Recomeçarei todos os dias, quantos forem necessários, até poder ter a alegria de nunca mais passar por aquele misto de sensações terríveis que passei naquela tarde, naquele encontro com aquela mãe. Neste dia saberei que nada nas escolas impede o caminhar de um ser humano. Saberei que as pessoas não são o resultado do que escrevem num papel, numa determinada semana agendada. São mais, muito mais que isto, e têm o direito de viver, e de fugir do que lhes ameaça a vida, sem terem os seus passos interrompidos pelas escolas e suas burocracias absurdas.
Deus guie os passos daquela mulher. De minha parte, alertei-lhe de que, se quiser, faço as coisas de outro jeito, impondo às escolas que avaliem as crianças independentemente do dia que o calendário prevê que isto aconteça. Mas ela pareceu-me concordar com as sugestões das escolas, e eu respeitei sua decisão. Ao sair, eu a abracei. E enquanto estávamos abraçadas pedi perdão a Deus por tudo o que fazemos de errado nas escolas. E pedi a Ele, também, para protegê-la e aos seus quatro filhos, até que terminem as provas, até o final do segundo bimestre.

Um comentário:

  1. Que saudades da minha escola cursada no Ensino Fundamental (antigo primário)! Eu tinha professores que me ajudavam a gostar de estudar. Lembro-me bem de um período em que fiquei doente: caxumba, crise de amigdalite e uma alergia respiratória, sucessivamente, que me tirou da escola por quase dois meses. Recebia as atividades, meus colegas levavam o caderno para mim, a diretora sempre dava um jeito de perguntar como eu estava. Houve provas que não fiz naquele bimestre e não fui reprovada por isso. Essa história aqui do blog é bem diferente da minha, mas me fez lembrar do que passei e do quanto fui feliz numa escola cheia de vida, organização, interesse pelos alunos. Uma escola que fez com que eu me sentisse importante, mesmo precisando ausentar-me. Uma escola que hoje, ainda existe em prédio e que espero resistir, mantendo os ideais que colaboraram para que eu fosse o que eu sou.

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