sábado, 1 de setembro de 2012

Alunos prontos

(Preocupada com o uso cada vez maior do jargão "Escola ensina, família educa" escrevi meus pensamentos sobre o assunto. Ah, que bom seria se os alunos já viessem prontos!...)


Eles têm vindo de casa sem a menor educação, e é por isto que não passam de ano”. Esta é uma conclusão comum em finais de tardes de encontros de professores. E eu venho arrumando na minha cabeça um emaranhado de desculpas – e agora até frases feitas de redes sociais! – de educadores em geral, decorando-as, e tentando me convencer de que dizem o certo. Mas eu não consigo!
Professores hoje dão aulas à terceira geração de alunos. É matemática: meninos e meninas estão sendo pais e mães aos quatorze anos de idade. Um professor leva, no mínimo, vinte e cinco anos para conseguir se aposentar. E, aposentado, geralmente volta ao trabalho, contratado, permanecendo numa sala de aula por mais um bom tempo...
Aí, é comum ver os filhos dos ex-alunos. Surpreendemo-nos quando, na primeira reunião de pais, encontramos aquele que já esteve nos bancos da sala, assistindo nossas aulas.
Agora os professores estão com os filhos dos seus ex-alunos, e esses meninos e meninas estão “grávidos”, também, uma vez que já têm a idade de quatorze anos. É, estamos ficando velhos: já somos “avós” dos nossos alunos.
A geração dos meus pais chegou à escola “educada”: um temor absurdo diante do professor que lhe sabatinava movimentando a palmatória, ou apontando para a caixa de milhos no chão. Esta geração chegou à escola com marcas no corpo oriundas da “educação” que recebeu de casa: ou eram marcas de surra, ou de trabalho pesado. Esta geração nunca olhou nos olhos de seus pais, nunca se atreveu a lhes dizer de suas opiniões. Sempre temeu, sempre se calou. E seu comportamento não foi diferente quando conheceu a escola.
Mas o progresso chegou. A mulher tornou-se independente por razões que se discute até hoje (eu, particularmente, acho que foi pela incompetência do homem de sustentar a casa...). E entre optar por trabalhar ou passar certas necessidades, o casal foi para a rua e esqueceu a criança em casa. Com pouco tempo para tratar de assuntos como educação, obediência, valor, virtude, hierarquia, respeito, à escola foi sendo atribuída, cada vez mais, a responsabilidade por resgatar uma educação que se perdeu no relógio de ponto dos empregadores.
O governo contribuiu, com a miséria instalada. Nenhuma família sobrevive com salários indignos. A família contribuiu, com a reprodução em larga escala: menos condições = mais filhos (e aqui não me remeto somente a condições financeiras, não). E para a escola sobrou receber, no ato da matrícula, a falta de educação.
É. É uma discussão e tanto, concorda, minha amiga Gisela? (Gisela é uma amiga que sempre toca neste assunto comigo...)
O que eu sei – e vou morrer defendendo – é que estamos nas salas de aula com nossa terceira geração de alunos e ainda reclamamos, dizendo que a falta de educação é que os reprova ao final do ano... Tem alguma coisa errada aí, não?
Não adianta mais esperar o sinal tocar e ver entrar enfileirados os alunos prontos, nos dizendo “bom dia, professor!”, sentando calados, colocando sobre a mesa as tarefas de casa todas feitas e esperando, num silêncio mórbido, o conteúdo que lhes iremos apresentar.
São crianças. Os adultos somos nós, como diz meu amigo Alvaro. Cabe-nos retomar o ponto de partida, porque o bebê que está na barriga da menina da terceira carteira será, provavelmente, nosso aluno, também.
O que tento dizer é que se ensinamos há vinte e cinco, trinta anos, algumas gerações já são produtos de nossas mãos. Já passaram por nós, e sofreram as consequências, na escola, da educação que seus pais não lhes deram: as notas num vermelho-sangue, que cravam no corpo como tatuagem um destino infeliz de quem está reprovado pelo resto da vida.
Penso que o momento é de parar com este discurso fácil e omissivo de que hoje não se pode dar uma boa aula porque os alunos não chegam à escola educados pelos pais. Deus, os pais estão na rua. Uns trabalhando, “correndo atrás” de uma vida que a mídia impõe, a despeito da realidade de cada um. Estão fazendo as horas-extras para melhorar o salário no que for possível, ou estão à procura de um emprego decente. Os pais estão por aí, analfabetos, sem poder identificar o que há escrito no caderno de tarefas de casa dos seus filhos. Os pais alfabetizados pouco ficaram na escola – reprovados que foram por nós mesmos! – e não acompanham mais os problemas que seus filhos que passaram do terceiro ano de escolaridade levam para casa para serem resolvidos. Os pais que estão nas ruas trabalhando ou tentando um trabalho, chegam em casa mortos num cansaço desconfortável que não lhes permite sentar ao lado de seus filhos para lhes perguntar como foram na escola. E ainda tem coisa pior! Tem os pais que não estão em casa, porque nem casa tem! Tem aqueles que deixam seus filhos na escola para traficarem, para roubarem, para beberem, enfim...
E a escola esta aí, e é um misto disto tudo o que compõe a fila quando formamos os meninos e meninas para cantarem o Hino Nacional semanalmente.
Talvez se esquecêssemos um pouco o conteúdo obrigatório do dia, e nos preocupássemos mais com a vida que leva cada menino e cada menina que se senta diante de nós, ganharíamos, em vez de perder. De nada adianta bater numa tecla só. Os anos, as décadas estão passando. Os índices nos mostram que a coisa está feia, e vamos insistir nessa fala medíocre de conselho de classe de que Joãozinho não passou porque é um mal educado? De que escola ensina e família educa? De que – meu Deus do céu! – a pena para crimes cometidos deve atingir também aos meninos de dezesseis anos? Até a lei ser aprovada já haverá quem lhe defenda a aplicação para os garotos de dez, pela lógica...
Somos todos responsáveis, enquanto nosso lugar de TRABALHO for a escola. Porque por lá passam os meninos que respondem aos inquéritos. Muitos tiveram seus nomes escritos na nossa lista de chamada. Somos seus cúmplices.
O dever da escola é atingir aos pais, já que entende que algo não está dando certo. Os pais devem ser convidados a fazerem parte da escola, quase como que obrigatoriamente, como fazemos com os alunos, exigindo-lhes a presença. Foi melhor para o aluno, depois que a Lei os obrigou a frequentarem a escola? Será melhor para os pais, também. Quem ganha com isto? A escola. Todos nós.
Pensemos nisto. As barrigas estão rompendo todos os dias. Ainda dá pra salvar a geração que vem aí.

4 comentários:

  1. Eu também ainda creio que é possível!! A salvação chega por meio da escola; não somente pelo proposto mas primordialmente pelo que deve ser vivido,experimentado,ousado em práticas que nos façam re-conhecer cada aluno,a cada dia,a cada instante!

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  2. Concordo. Parabéns pelo texto e pela coragem! Muito bom! Aplausos! :)

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