sábado, 20 de outubro de 2012

Extremidades

(Meu pai e meu filho são as extremidades da linha, do barbante do tempo que me foi concedido por Deus... E eu queria tê-los pra sempre!!)



Vejo a vida como uma linha, um barbante, e nessa visão, meu pai e meu filho compõem-lhe as extremidades.
Adoro quando recebo a visita de meu pai. Chegou para fazer um exame médico. Eu o levei ao hospital, depois para a minha casa. Quando Antônio chegou da escola, percebendo a presença do avô, saltou para os braços dele, num pedido de colo que meu pai já não dá mais conta de atender...
Falta muito pouco para Antônio alcançar papai. Assistindo à cena, e vendo tão pouca diferença na altura dos dois, voltei ao passado e senti um incômodo ao lembrar-me de que papai já fora, um dia, bem maior que eu...
Antônio está com seis anos. Papai, com setenta e oito. E eu, aos quarenta e quatro, no meio da linha (uma metade lógica, nada precisa!) sofro por pensar que meu sonho não se realizará: um sonho egoísta de ver Antônio envelhecer, tendo meu pai ao meu lado...
Difícil quando se pensa nestas coisas, não? Como posso amar tanto os dois, e saber que um dia não mais os terei perto de mim? Pensar no futuro do meu filho implica dizer adeus ao meu pai. E isto não é loucura, é a ordem natural das coisas...
Eu assisti ao velório da minha avó materna. Eu tinha uns nove anos. E me lembro com clareza do olhar perdido da minha mãe quando o caixão se fechou. Uns olhos afogados, um queixo enrugado, um adeus calado, sofrido... Naquela época eu não entendia bem dessas coisas, não doeu muito em mim, eu só via vovó nos finais de semana em que íamos à casa dela. Ela não era carinhosa, não me deixava mexer nas suas coisas, não me oferecia coisas gostosas para comer... Morava sozinha, então, era uma casa de “velha”, que não me atraía muito. Daí eu nem sofrer tanto assim. Mas a minha mãe, esta sim, sofreu demais.
Hoje tenho pai e mãe vivos – Graças a Deus! – e me confunde um pouco pensar que a linha do tempo não contempla todas as gerações da minha família. Alguém terá que ir, para que eu conheça os netos que Antônio me dará... E aí, não haverá papai para segurá-los no colo, para “arrancar” o polegar de uma das mãos e assustá-los procurando pelo dedo, brincadeira da qual Antônio gosta tanto!
Imaginar um Antônio me apresentando os netos me faz ver-me envelhecida. Uma incerteza de como estarei, do que terá sido feito de mim me angustia...
Ah, homens sábios, homens do bem, cientistas, médicos, religiosos, onde está a resposta para as perguntas que a gente faz a si mesmo quando olha o filho e o pai? Essa dor de se saber mortal, finito... Essa dor de se saber que um dia haveremos de nos despedir daqueles a quem tanto amamos?
Nas extremidades da minha linha, do meu barbante, Walter e Antônio. Aquele que me deu a vida, e aquele que a mantém. Eu, no meio, dividindo com eles o meu amor incondicional. Eles, dividindo comigo o amor deles, também. Meu pai faz poucos planos, hoje. Às vezes diz esperar a morte, apenas. Antônio espera a vida, enquanto vive o melhor dela, e nem se dá conta disto.
Nas rugas de meu pai, nos calos de suas mãos, nos ossos fracos, na memória lenta, um adeus à vida daquele que já foi um menino de seis anos de idade, também.
Meu pai foi uma criança esperta, que aprendeu a dirigir aos sete anos. Cresceu, foi convidado a sair da escola dado o número de reprovações (já escrevi sobre isto). Condenado pela escola, precisou esconder no bolso o sonho de ser médico. Enterrou a mãe quando tinha dezoito anos. Sofreu a dor de um jovem apaixonado por uma mãe tuberculosa, que pouco viu fora da cama. Para papai a lógica não aconteceu: vovó se foi, e nem esperou pelos netos. Rompeu-se a linha do tempo de meu pai antes da hora lógica.
Hoje estou vendo Antônio recuperando-se da catapora, dormindo profundamente em sua cama, e estou pensando em meus pais. Pensando no peso das pessoas na Terra, explicação “barata” que dei a Antônio quando me perguntou o motivo pelo qual as pessoas morriam. Ele chorava pelos bisavós que não pôde conhecer, e aí eu lhe disse que para que ele e Miguel (o primo) viessem ao mundo, os mais velhos têm que ir pro céu, porque senão a Terra ficaria muito pesada com todos aqui. Uma resposta tola, que nada tem a ver com a minha vontade sincera de poder apresentar Antônio aos meus avós, agora...
Graças a Deus acredito num céu maravilhoso. E acredito que é para um lugar maravilhoso que meus pais irão, quando chegar a hora deles. Sei que é egoísmo querer tê-los por aqui, vendo Antônio crescer, e se formar, e trabalhar, e se casar, e ter-lhes os bisnetos... Quando eu nasci minha mãe já ia completar seus trinta anos. Quando Antônio nasceu, eu tinha trinta e sete. Não há tempo para essa eternidade toda.
Por ora, vou curtindo os espaços que o barbante me reserva. Amando, abraçando, acolhendo. Sei que ainda não consegui retribuir o que fizeram por mim. Vendo a vida de inferno que vivem tantas pessoas, agradeço a Deus pelos pais que tenho. Basta que dediquemos uns minutos aos meios de comunicação e estão lá tantas famílias desestruturadas, tantas em guerra! Tantos filhos e pais se matando, destruindo gerações futuras! E, no entanto, Deus, na sua infinita misericórdia, permitiu-me nascer na família que Walter e Vanda decidiram formar.
Meus netos não conhecerão meus pais. Não estes: um pai que ontem trocou a porta da minha cozinha sem qualquer ferramenta própria para isto, apenas uma chave de fenda e uma faca sem ponta; uma mãe que acabou de ter renovada a carteira de habilitação, aos setenta e dois anos de idade. Talvez meus netos conheçam dois velhinhos, próximos de chegarem aos noventa, aos cem anos... E é muito doloroso ter esta certeza: de que o futuro não conhecerá o passado. Assim será comigo, que não estarei mais aqui quando meus netos se casarem...
A linha, o barbante, têm medida certa. Quando Deus lhes nos entrega, não nos é possível conhecer o tamanho do rolo. Importa que saibamos vivê-lo.
Toda vez que dá saudade vou a São Gonçalo ver meus pais. E sempre que os deixo no portão acenando quando venho embora, fico em dúvida se matei a saudade. Dá vontade de voltar, dá vontade de ficar. Que Deus abençoe minha família. Eu não sei por quanto tempo estaremos juntos, mas faço minha parte para manter o Amor em dia. Pois acredito que este Amor justifica o tamanho do rolo do barbante.

3 comentários:

  1. A vida terrena é feita de começo, meio e fim, mas mesmo esse fim é só uma partida para um novo começo, e isso é divino pensar e ao mesmo tempo acalentar os nossos sentimentos humanos.
    Parabéns nossa mais nova poetisa ou poeta!

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  2. LINDA REFLEXÃO DA NOSSA TRAJETÓRIA DE VIDA!
    FINITA!
    SERIA EFÊMERA ?
    TALVEZ FUGAZ.
    NÃO A CONSEGUIMOS RETER.
    POR MAIS QUE QUEIRAMOS OU DESEJEMOS!
    POR MAIS QUE INSISTAMOS!
    ELA DE REPENTE PENETRA PELOS NOSSOS OLHOS E,
    ESCORRE PELOS NOSSOS DEDOS.
    O QUE É A VIDA?


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