quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Fidelidade


(Uma família abandona a casa, rumo ao Rio de Janeiro. E um fiel cãozinho malhado está no portão há três meses, esperando pela volta dos seus donos...)

A família precisou sair de casa, rumo ao Rio de Janeiro, para não mais voltar. Tudo aconteceu muito rapidamente e, pela lógica dos fatos, ele não foi consultado. Também não foi incluído nos planos de viagem. Ele ficou, então. Ele é meu vizinho. Ele é um cãozinho malhado...
Queria conseguir fotografá-lo. A fotografia falaria por si, eu já experimentei vários ângulos que traduzissem em imagens a dor de uma saudade. Acho que vou conseguir.
Ainda aguardo respostas sobre a presença de animais no céu. Quando escrevi o texto “Leão e urubu”, instiguei a polêmica. Mas enquanto a resposta não vem, prossigo crendo que lá no céu estão, também, os animais que convivem conosco na Terra. E espero não estar destinada ao inferno por pensar assim.
Dia desses interpelei um rapaz que agredia severamente um cavalo, usando chicotes. Ele pretendia que o bicho entrasse num espaço pequeno, e com força o empurrava, gritando palavrões e batendo muito, muito em seu lombo. Quando dei por mim tinha parado o carro diante do moço e defendia o animal como se fosse meu. Eu corri o risco de levar algumas chibatadas também. Mas Deus pôs suas mãos sobre aquele homem e impediu que o pior acontecesse. Tendo voltado à calma, conduziu o cavalo ao lugar de destino sem violência, pelo menos na minha frente...
O cãozinho está na casa vazia. Algum vizinho colocou uma pedra entre as duas bandas do portão, de modo que ele pode entrar e sair de casa. Ali lhe são trocados pelos que têm compaixão, água e alimento. Quando chove, tem a varanda para abrigar-se. Nos dias de muito calor, vai à rua, pegar uma fresquinha...
Todas as manhãs, quando saio de casa para trabalhar, vejo a cena da fotografia. E não há quem me convença do contrário: aquele bichinho espera pela volta de seus donos. Depois de ficar alguns segundos parado, olhando a rua, com o focinho empinado como quem pretendesse ser avisado pelo faro de que sua família está chegando, ele baixa as orelhas e dá uma volta pelo quarteirão. Muito atento, muito assustado, sobressalta-se com qualquer movimento brusco. Já reconhece os vizinhos que o “adotaram”: abana o rabo quando se aproxima a moça que trabalha na casa em frente, certo de que de sua sacola sairão dois ou três pedaços de pão dormido. A entrega é sempre acompanhada de um afago em sua cabeça, pêlo amarelo endurecido pela sujeira do tempo que passou.
O malhadinho está neste sofrimento há três meses. Quanto tempo será que dura a memória de um cão?
Meu pequinês “Sheike” avisava-nos a todos lá em casa quando papai estava chegando para o almoço. Inquieto, começava a dar pulos de um lado para o outro, a latir, a chorar... Demonstrava a alegria de quem está prestes a matar uma saudade enorme. Eu era criança, mas lembro-me bem de que pelo tempo que levava entre Sheike começar a dar sinais e papai chegar da oficina, a gente sempre comentava que o faro dele percebia papai a alguns bons quilômetros de distância.
Eu não sei por quanto tempo aquele cachorrinho esperará por seus donos. Fico imaginando que terá que sair de lá, se a casa for novamente alugada. E, dona de duas cadelinhas também encontradas perdidas na rua, entristeço por não poder atender aos apelos do meu coração e trazê-lo para a minha casa. Fosse assim, e teria todos eles no meu quintal!
Talvez não haja, mesmo, espaço reservado para animais como o meu vizinho malhado, no céu. Mas custa-me crer que Deus tenha posto criaturas tão sensíveis, fiéis, ingênuas no mundo para destinar a elas a solidão, o abandono, o sofrimento. O cavalo, aquele que citei no início do texto, pertencia ao rapaz. E depois da calma, o seguiu, fielmente, sem contestações, sem demonstrar revolta...
Uma experiência que assisti na televisão há algum tempo mostrava que os cães dos carroceiros (eles sempre têm um, já reparou?) são tão fiéis e amigos que abandonam até um prato de comida para não lhes perderem de vista. Sim, na experiência repórteres punham um prato de comida para um cão faminto e, assim que ele começava a comer, pediam que o dono saísse de perto com a carroça. E em nenhuma das tentativas o cão permaneceu comendo. Foram, todos, atrás de seus donos, deixando para trás a tigela com o alimento. Então, um bichinho deste morre e... acabou ali mesmo? Enterramos, e pronto?
A cadelinha de estimação da  minha avó permaneceu embaixo de sua cama durante todos os dias – e foram muitos! – em que ela lutou contra uma tuberculose que a levou aos quarenta e dois anos de idade. E meu pai conta até hoje, com os olhos marejados de lágrimas que ela esteve, do mesmo jeito, embaixo da mesa da sala onde o corpo de vovó foi velado. E seguiu o cortejo, e não deixou o cemitério, como fizeram todas as pessoas quando o enterro terminou.
Se os fiéis têm garantido o lugar nos braços de Deus quando lhes chega a hora de partir, há animais que passarão primeiro do que muitos homens e mulheres nesta fila.
Eu visualizo um Deus de barbas brancas como neve, com seus braços estendidos para um abraço daqueles que jamais experimentamos em vida. E penso que quando Deus se levanta do trono para receber cada filho que aqui na Terra fez-se digno de sua companhia, cães, gatos, pássaros, onças, lobos, leões e urubus fazem a saudação junto com Ele. E meu pensamento viaja ainda mais: imagino que Deus estenda os braços para apresentar o jardim do céu – o verdadeiro paraíso! – e, olhando para o infinito de beleza que o espera, o filho aviste cavalos, bois, zebras, búfalos pastando o verde mais bonito que existe, em total comunhão! Será pecado sonhar assim?
Seja como for, amanhã quando eu sair pra trabalhar verei o malhadinho lá, com aqueles olhos verdes, aquele olhar perdido, aquele focinho empinado. Eu não sei se lá no Rio de Janeiro alguém chora a sua falta, porque não sei de que forma se deram as coisas por ali, e não quero julgar ninguém. Mas vou passar por ele de novo e, de novo pedir a Deus por ele.
Assim me preparo para receber de Deus o ensinamento que Ele quer me dar, uma vez que me põe esta cena diante dos olhos diariamente. Alguma coisa Ele quer me dizer, e eu ainda não consegui descobrir. Talvez queira me dizer que o céu existe, e para todas as criaturas que por Ele foram criadas. Se for isto, meio caminho já foi andado, porque só um lugar como o céu recompensaria aquele cãozinho por tamanha fidelidade.

2 comentários:

  1. Que sensibilidade amiga!Eu,como você,também acredito que no céu estão os animais e é essa certeza que consola meu coração,pois sei que encontrarei meu Brutus abanando rabo quando me reencontrar.Aprendi o quanto eles sofrem.Em minha depressão,meus dois amados companheiros também a tiveram...um foi levado por ela(quando eu por pouco também não o acompanhei),a outra prestes a desistir da vida,como eu,foi entregue ao pai(meu ex) e conseguiu renascer(como eu!)!!Fidelidade é o nome deles!!

    ResponderExcluir
  2. Eles são como anjos na vida da gente... Pena que poucos deem valor a isto.

    ResponderExcluir