Ela já estava lá, quando fomos para a casa nova. Não sei, portanto, quantos anos tinha.
Mas, pela grossura do tronco, imagino que muitos!
Sua
altura era maior que a da casa, que tem dois pavimentos. E isto não a afligia. Soberana, sua presença garantia sombra fresquinha no
quintal da minha irmã, que mora na parte de cima, e em toda a extensão do quintal da minha mãe, na casa de baixo.
Ainda
lembro que, das últimas vezes em que estive por lá, encontrei as crianças na piscina, felizes, felizes. O
calor imenso que fazia nem lhes chegava perto, tão próximas que ficavam dos galhos de folhas
verdes que, de tão grandes, chegavam a lhes tocar. Minha imaginação de poeta via a velha amendoeira
brincando com os meninos. Na verdade, para mim, ela tomava conta deles nas
horas em que nos distanciávamos. Mas disto só eu sei. Eu e as minhas caraminholas...
Para
quem é poeta – refiro-me a quem vê a vida com poesia – a morte de uma amendoeira não é só o fim de uma árvore. É muito, muito mais do que isto. São incontáveis os sonhos que se vão, quando se derruba galhos daquele
ser vivo que se tomba ao chão. Shakespeare já gritara sua poesia em “Sonhos de uma noite de verão”. Mas alguém ficou sem ouvir e, então, não passou o recado adiante e, então, alguém não percebe que há vida numa velha amendoeira.
Ela
cresceu demais, mas não foi sua culpa. Foi plantada ali, certamente não fora aquele o lugar de seu
nascimento... Mas cresceu, feliz que era! Assim que nos mudamos pra lá, era a solução para muitos dos problemas da
vizinhança toda: sombra para estacionar os carros de quem não tinha garagem ou árvores em sua calçada, lugar de reunião das crianças para uma brincadeira protegida do
sol, ponto de encontro dos namorados à noitinha, local para a sesta dos
caminhoneiros após o almoço da marmita, ou de uma paradinha para o descanso daqueles que
vinham do supermercado com sacolas pesadas...
Mas o
tempo foi passando e, enquanto ela crescia – talvez com a pretensão de poder ajudar a mais gente – as consequências de sua “felicidade” começaram a incomodar: seus galhos
atingiram fios de alta tensão, suas raízes invadiram e quebraram as calçadas chegando mesmo a penetrar nas
cisternas que ficavam próximas.
Então, a decisão tomada pelos homens de coração frio foi a de retirá-la de lá.
Durou
pouco tempo a operação. Num dia, eu estive lá e a vi sem seus galhos mais altos. No
outro, deparei-me, já, com a cena da foto.
Ninguém reparou que os amanheceres e
entardeceres ficaram diferentes depois que ela se foi. Só eu. Porque eu penso que árvores ajudam a compor amanheceres e
entardeceres, e se não há delas por perto, tudo fica muito diferente.
Eu
sofri pelos passarinhos que anunciavam o dia. Certamente, uma amendoeira
daquele tamanho abrigava mais que uma família de pássaros, com seus ninhos abarrotados de
ovinhos, garantindo a espécie, garantindo o futuro, garantindo um nascer do sol mais
bonito. Sofri porque sei que lá havia também muitos morcegos, e agora não há mais aquele bailar de fim de tarde,
anunciando que o dia chegara ao fim. Aquele arrepio de medo que sentíamos quando ficávamos no quintal à tardinha, temendo que um deles
chegasse perto de nós, nunca mais. Nunca mais, também, mostrar às crianças a posição engraçada como os morcegos dormem...
A família de calangos que se mudou para a
velha amendoeira quando meu pai resolveu construir a oficina mecânica justamente onde moravam os
bichinhos, também desapareceu, quando a árvore veio ao chão. Não viram para onde foram. Perguntei,
mas ninguém soube me responder. E eu, louca, sofrida, rezo a Deus para que
os tenha mantido juntos, pai, mãe e filhotes calanguinhos.
Existe
um mundo que não conhecemos e, no entanto, decidimos dominar, que é o mundo dos outros seres tão vivos como nós. Tudo tem que perecer, para que nós, humanos, vivamos. Ninguém se dá ao trabalho de pensar nas consequências dos seus atos, porque só se pensa no “agora”, no imediato. Plantaram a amendoeira lá, porque precisavam dela naquele
momento. E ninguém hesitou em arrancá-la de lá – sua vida e as tantas outras vidas que
abrigava! – diante do primeiro sinal de necessidade.
Qualquer
um que olhe a foto vê o que sobrou da velha árvore: um toco, um lixo. Eu vejo dor. É possível, aprimorando o olhar, que eu veja lágrimas. Não estava chovendo no dia que
fotografei. Como explicar o líquido?
Talvez
algum leitor conhecedor da química, da física, das ciências tenha uma explicação lógica para a foto da velha amendoeira.
Eu respeito tudo o que me disserem: pra mim, é lágrima.
Voltei
para casa com saudades dela. As crianças passaram dias na piscina debaixo de
um sol quente que lhes custou camadas e mais camadas de filtro solar. Não tivemos mais a certeza do sol do dia
seguinte, porque não havia mais cigarras cantando a previsão do tempo. Farelos de ninho
espalhados pelo chão são cena que do meu pensamento e do meu coração ainda não saíram. Penso nos filhotinhos... Não presenciei mais sesta alguma,
tampouco juras de amor. Os carros esquentavam nas garagens descobertas. E daqui
a alguns dias, alguém fará um buraco em frente a sua casa, e plantará uma amendoeira que, sem saber-se descartável, abrigará nova fauna e protegerá novas crianças.
É a vida. O único ser vivo a quem Deus deu inteligência foi o homem. Resta-me chorar de
saudades. E guardar a foto da morte, triste por não ter tido a ideia de fotografar a
velha amendoeira enquanto ainda esteve viva.
Amiga Karla Pontes, quando posso vou descansar final de semana em Lumiar (Nova Friburgo), fico em uma casinha em um vale com árvores de todas as espécies, pássaros (Canário, Maritaca, Beija-flor, Bem-te-vi, Sábia Laranjeira, Pica-pau, Trinca ferro, Azulão....etc.....As matas e as cachoeiras são os ingredientes mais que atrativos para nos levar aquele relex que tanto precisamos no final de semana e que também nos faz lembrar da nossa infância. Você me fez lembrar do quintal da casa da vovó, onde tinha: mangueira, tamarindo, goiaba, carambola...etc. Alguns anos atrás tive o prazer de passar em frente a casa em que vovó morava, lá em Madureira- RJ, só consegui ver que aquele lindo quintal tinha se transformado em uma fábrica de gesso. Hoje mesmo vi uma reportagem no canal futura que a sombra de uma árvore abaixa 6 graus de temperatura. Infelizmente o homem não se interessa pela sombra de uma árvore.Bjs.Amiga!!!!
ResponderExcluirMas um dia irá chorar muito com saudades dela, amiga, da sombra, cada vez mais rara ultimamente!...
ExcluirMaravilhoso,nossa flora tem motivos pra chorar, mas muito mais a sorrir de ter pessoas como você no mundo..amei a leitura!
ResponderExcluirNatureza é alegria, Ieda, apesar do homem...
Excluir