domingo, 27 de janeiro de 2013

A velha amendoeira

(A minha última visita aos meus pais, na casa onde morei na juventude, ficou incompleta: a velha amendoeira não existe mais. Como não sei ver nada sem meus olhos de poeta, restou-me escrever a saudade.)


Ela já estava lá, quando fomos para a casa nova. Não sei, portanto, quantos anos tinha. Mas, pela grossura do tronco, imagino que muitos!

Sua altura era maior que a da casa, que tem dois pavimentos. E isto não a afligia. Soberana, sua presença garantia sombra fresquinha no quintal da minha irmã, que mora na parte de cima, e em toda a extensão do quintal da minha mãe, na casa de baixo.

Ainda lembro que, das últimas vezes em que estive por lá, encontrei as crianças na piscina, felizes, felizes. O calor imenso que fazia nem lhes chegava perto, tão próximas que ficavam dos galhos de folhas verdes que, de tão grandes, chegavam a lhes tocar. Minha imaginação de poeta via a velha amendoeira brincando com os meninos. Na verdade, para mim, ela tomava conta deles nas horas em que nos distanciávamos. Mas disto só eu sei. Eu e as minhas caraminholas...

Para quem é poeta refiro-me a quem vê a vida com poesia a morte de uma amendoeira não é só o fim de uma árvore. É muito, muito mais do que isto. São incontáveis os sonhos que se vão, quando se derruba galhos daquele ser vivo que se tomba ao chão. Shakespeare já gritara sua poesia em Sonhos de uma noite de verão. Mas alguém ficou sem ouvir e, então, não passou o recado adiante e, então, alguém não percebe que há vida numa velha amendoeira.

Ela cresceu demais, mas não foi sua culpa. Foi plantada ali, certamente não fora aquele o lugar de seu nascimento... Mas cresceu, feliz que era! Assim que nos mudamos pra lá, era a solução para muitos dos problemas da vizinhança toda: sombra para estacionar os carros de quem não tinha garagem ou árvores em sua calçada, lugar de reunião das crianças para uma brincadeira protegida do sol, ponto de encontro dos namorados à noitinha, local para a sesta dos caminhoneiros após o almoço da marmita, ou de uma paradinha para o descanso daqueles que vinham do supermercado com sacolas pesadas...

Mas o tempo foi passando e, enquanto ela crescia talvez com a pretensão de poder ajudar a mais gente as consequências de sua felicidade começaram a incomodar: seus galhos atingiram fios de alta tensão, suas raízes invadiram e quebraram as calçadas chegando mesmo a penetrar nas cisternas que ficavam próximas.

Então, a decisão tomada pelos homens de coração frio foi a de retirá-la de lá.

Durou pouco tempo a operação. Num dia, eu estive lá e a vi sem seus galhos mais altos. No outro, deparei-me, já, com a cena da foto.

Ninguém reparou que os amanheceres e entardeceres ficaram diferentes depois que ela se foi. Só eu. Porque eu penso que árvores ajudam a compor amanheceres e entardeceres, e se não há delas por perto, tudo fica muito diferente.

Eu sofri pelos passarinhos que anunciavam o dia. Certamente, uma amendoeira daquele tamanho abrigava mais que uma família de pássaros, com seus ninhos abarrotados de ovinhos, garantindo a espécie, garantindo o futuro, garantindo um nascer do sol mais bonito. Sofri porque sei que lá havia também muitos morcegos, e agora não há mais aquele bailar de fim de tarde, anunciando que o dia chegara ao fim. Aquele arrepio de medo que sentíamos quando ficávamos no quintal à tardinha, temendo que um deles chegasse perto de nós, nunca mais. Nunca mais, também, mostrar às crianças a posição engraçada como os morcegos dormem...

A família de calangos que se mudou para a velha amendoeira quando meu pai resolveu construir a oficina mecânica justamente onde moravam os bichinhos, também desapareceu, quando a árvore veio ao chão. Não viram para onde foram. Perguntei, mas ninguém soube me responder. E eu, louca, sofrida, rezo a Deus para que os tenha mantido juntos, pai, mãe e filhotes calanguinhos.

Existe um mundo que não conhecemos e, no entanto, decidimos dominar, que é o mundo dos outros seres tão vivos como nós. Tudo tem que perecer, para que nós, humanos, vivamos. Ninguém se dá ao trabalho de pensar nas consequências dos seus atos, porque só se pensa no agora”, no imediato. Plantaram a amendoeira lá, porque precisavam dela naquele momento. E ninguém hesitou em arrancá-la de lá sua vida e as tantas outras vidas que abrigava! diante do primeiro sinal de necessidade.

Qualquer um que olhe a foto vê o que sobrou da velha árvore: um toco, um lixo. Eu vejo dor. É possível, aprimorando o olhar, que eu veja lágrimas. Não estava chovendo no dia que fotografei. Como explicar o líquido?

Talvez algum leitor conhecedor da química, da física, das ciências tenha uma explicação lógica para a foto da velha amendoeira. Eu respeito tudo o que me disserem: pra mim, é lágrima.

Voltei para casa com saudades dela. As crianças passaram dias na piscina debaixo de um sol quente que lhes custou camadas e mais camadas de filtro solar. Não tivemos mais a certeza do sol do dia seguinte, porque não havia mais cigarras cantando a previsão do tempo. Farelos de ninho espalhados pelo chão são cena que do meu pensamento e do meu coração ainda não saíram. Penso nos filhotinhos... Não presenciei mais sesta alguma, tampouco juras de amor. Os carros esquentavam nas garagens descobertas. E daqui a alguns dias, alguém fará um buraco em frente a sua casa, e plantará uma amendoeira que, sem saber-se descartável, abrigará nova fauna e protegerá novas crianças.

É a vida. O único ser vivo a quem Deus deu inteligência foi o homem. Resta-me chorar de saudades. E guardar a foto da morte, triste por não ter tido a ideia de fotografar a velha amendoeira enquanto ainda esteve viva.

4 comentários:

  1. Amiga Karla Pontes, quando posso vou descansar final de semana em Lumiar (Nova Friburgo), fico em uma casinha em um vale com árvores de todas as espécies, pássaros (Canário, Maritaca, Beija-flor, Bem-te-vi, Sábia Laranjeira, Pica-pau, Trinca ferro, Azulão....etc.....As matas e as cachoeiras são os ingredientes mais que atrativos para nos levar aquele relex que tanto precisamos no final de semana e que também nos faz lembrar da nossa infância. Você me fez lembrar do quintal da casa da vovó, onde tinha: mangueira, tamarindo, goiaba, carambola...etc. Alguns anos atrás tive o prazer de passar em frente a casa em que vovó morava, lá em Madureira- RJ, só consegui ver que aquele lindo quintal tinha se transformado em uma fábrica de gesso. Hoje mesmo vi uma reportagem no canal futura que a sombra de uma árvore abaixa 6 graus de temperatura. Infelizmente o homem não se interessa pela sombra de uma árvore.Bjs.Amiga!!!!

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    1. Mas um dia irá chorar muito com saudades dela, amiga, da sombra, cada vez mais rara ultimamente!...

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  2. Maravilhoso,nossa flora tem motivos pra chorar, mas muito mais a sorrir de ter pessoas como você no mundo..amei a leitura!

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