(É uma confissão. Mas talvez tenha chegado até aqui por não ser só minha.)
Amanheceu
um dia de sol lindo assim, como hoje, em 22 de abril de 1995. A única diferença para o dia
de hoje é que era um sábado.
Não
me lembro bem por onde comecei a organizar-me para a noite, mas lembro que fiz
uma oração, meio rápida, agradecendo a Deus pelo dia.
Acho
que tomei sol. Naquela época eu era cismada com isto, gostava de estar
bronzeada. Na cadeira de praia, ali mesmo no quintal, “peguei” uma corzinha,
para não parecer pálida demais à noite.
Depois
de tomar banho fui ao salão de beleza. Fiz as unhas e um coque no cabelo. Muito
gel para ficar arrumadinho. Muito gel para receber, horas mais tarde, a
grinalda de flores naturais. Naquele sábado, 22 de abril de 1995, eu me
casaria.
Nada
de passar o dia num SPA, nada de rotina especial. O salão ficava na esquina da
minha rua. Em menos de duas horas voltava a casa para fazer o restante.
Almoçamos e meu pai seguiu para a casa da costureira para buscar o vestido. A
única prova eu havia feito no dia 19. Uma única vez havia experimentado o
vestido que usaria na noite mais importante da minha vida.
Cerimônia
marcada para as dezoito horas. Tentei cochilar depois do almoço, mas a
ansiedade não deixou. Preocupada em ficar com olheiras (o resto dos meus
defeitos eu já havia garantido esconder com o modelo escolhido para vestir),
comecei uma luta diante do espelho com o pó compacto. Não, não houve
maquiadora. Eu mesma tratei de dar conta disto. E enquanto esperei papai chegar
com o vestido, pus pó compacto na área dos olhos.
Bem,
meu pai chegou com aquela lindeza de vestido! Tendo sido eu a desenhá-lo,
fiquei extremamente satisfeita. A costureira, Dª Custódia, ainda entrou com
seus detalhes experientes. Eu queria tudo muito simples, então, ela sugeriu-me
cetim brocado, porque eu não queria renda. Acabei comprando um cetim brocado
maravilhoso, num tom de branco envelhecido – pérola, talvez – e nunca vi coisa
mais linda do que aquela! Aplicações de guipir em todo o decote (grudado ao
pescoço) e na cintura deram um tom bucólico e romântico àquela noiva de 1,68m
de altura e 55kg. Usei luvas de cetim de três quartos. E, com a magreza escondida sob o tecido, e a tristeza sob o pó compacto, surgi de dentro do quarto pronta para o
casamento.
O
motorista, um velho amigo do meu pai, que na época tinha um automóvel Santana
muito bem cuidado, conduziu-me à Igreja de São Lourenço. Acho que, pelo
retrovisor, via além do trânsito, pois me perguntava de vez em quando se
estava certa de minha decisão. Quando estacionou no pátio da Igreja, virou-se,
olhou nos meus olhos e me perguntou, com a liberdade de quem me viu nascer, se
era aquilo mesmo o que eu queria fazer. E ofereceu-se para me levar de volta
para casa, caso eu decidisse desistir.
As
palavras do Sr. Brasil, o motorista, acompanharam-me durante todas as minhas
horas. Até hoje, às vezes, pareço ouvi-las. Mas as ouvi incessante e fortemente
em todos os passos que dei dentro daquela Igreja.
Eu
sou pontual demais, e acabei chegando primeiro. Ficamos no carro, aguardando os
convidados. Mas eu sou ansiosa também, e não esperei muito. Quando entrei, a
Igreja estava vazia – todos contam com o atraso da noiva! – e foi difícil
passar por bancos que não me diziam nada, de tão vazios!
O
interior da Igreja não estava enfeitado. Eu não tive dinheiro para pagar a
ornamentação. Depois de mim, casaria-se uma dentista que, diante da minha
impossibilidade de dividir com ela a despesa da decoração, optou por esperar o
meu casamento acabar para arrumar os enfeites para o dela. Pouco me importei: a Igreja era, por si só, linda demais. Quase ninguém percebeu a falta das flores...
Então, eu atravessei o corredor, braços dados com papai, e fui entregue por ele àquele
que seria a partir dali o meu esposo. Sr. Brasil comigo, o tempo todo,
sussurrando-me que dissesse não, se não quisesse fazê-lo.
Não,
eu não quebrei protocolo algum, eu não fui criada para isto. Não encheria meus
pais de vergonha, não me submeteria ao escândalo, não decepcionaria meu noivo,
não entristeceria minha sogra. Não jogaria por terra o dinheiro gasto com o
vestido e os custos da Igreja (festa não, porque não houve). Não, eu não seria uma
transgressora, uma rebelde, uma maluca. E, perdida entre tantos nãos, disse sim
ao Padre, ao noivo, aos convidados e morri ali mesmo, arrependida.
Em
1995 eu tinha vinte e seis anos. Pela forma como fui criada, encorpava a lista
das “mulheres encalhadas”, e minha mãe nunca se cansou de lembrar-me deste
detalhe. E tudo o que desenhei de história quando conheci o então
pretenso-futuro-marido foi um atropelo de ações impensadas, imaturas e, hoje,
imperdoáveis: Conhecemos-nos em agosto, neste mesmo mês começamos a namorar. Em
novembro ficamos noivos e começamos a construir a nossa casa. Em abril nos
casamos. Uma oportunidade imperdível, para uma moça velha de vinte e seis anos,
que só o que sabia fazer na vida era trabalhar, trabalhar, trabalhar, estudar e
passar os fins de semana trancada (trancada, não, minha mãe jamais permitiu que
nos trancássemos!) no quarto escrevendo, escrevendo, escrevendo e ouvindo
músicas de um estilo que ninguém naquela idade ouvia.
Hoje
não sei se meu sim foi um não, ou vice-versa. Meu casamento não deu certo, e
quando estávamos completando um ano e meio de vida em comum, descobri que a
vida “em comum” havia acabado. Uma vida “incomum”, que ninguém merece viver. Apesar
disto, de chegar a esta conclusão, mantive-me casada por cinco anos com um
estranho a quem eu não conhecia. Até hoje não sei se meu marido mudara, ou
revelara-se.
Vivo
hoje com essa dor no meu peito, que não me deixa. Ela se parece com a alegria
momentânea que habitou meu coração quando o Sr. Brasil estendeu as mãos e quis
me levar dali. Pensei tanto em ir-me embora!
Olhando
para a foto escolhida para ilustrar o texto, invejo a moça. Nada mais há que eu
faça. Fiquei com o estigma impresso. Fui julgada e condenada, do mesmo jeito,
pelas pessoas que o fariam lá mesmo, ainda dentro da Igreja. E ainda daria
tempo de eu recomeçar a vida. Que pena que não disse não!