Imagino-me saindo do consultório médico.
Acabei de ouvir do especialista em doenças do coração que tenho quarenta e oito
horas de vida. É o que meu coração suportará bater. Depois, cessará.
Não sei se saio alegre ou triste. São
quarenta e oito horas, então. Quarenta e oito horas. Ninguém sabe se vai viver
quarenta e oito horas. Meu médico me disse que eu vou. Alegro-me. Segundos
depois, entristeço-me. Quarenta e oito horas?
De vez em quando pensamentos assim me
dominam. Não tenho culpa, Mercedes (Mercedes já me disse para parar de escrever
sobre isto!). Quando os pensamentos me dominam, logo os esqueço, se escrevo.
Então, lá vou eu.
Eu decidi listar as coisas que faria, se
saísse do consultório com o veredicto nas mãos...
1 – Compraria um relógio imenso, para vigiar
cada minuto. Relógios pequenos enganam hipermétropes astigmatas como eu. Ainda
mais, sonhadores como eu.
2 – Não iria trabalhar. Desativaria o
despertador. Fecharia bem as janelas do quarto, taparia a parte que está
quebrada com algo que não permitisse a passagem da claridade. Dormiria o que
corpo pedisse. Respeitaria este desejo físico, ainda que pela penúltima vez.
3 – Quando acordasse, sairia de casa com
Antônio. Não, eu não o levaria à escola. Levaria meu filho a uma praia bem
bonita. Talvez em Arraial do Cabo, porque sei que ele adora ir lá. Talvez sem
roupas de banho. Só para caminharmos na areia. E quando nos cansássemos
bastante, proporia a ele um banho gostoso de mar, com as roupas do corpo. Posso
imaginar-lhe a expressão de espanto-alegria. Neste dia Deus nos presentearia
com os golfinhos que às vezes aparecem por lá. Chegaríamos bem perto de uns
deles e nos divertiríamos bastante.
4 – Compraria todos os sorvetes, os milhos
cozidos e as empadinhas. Arrendaria as boias e brinquedos infláveis que dão
colorido à orla e enchem de alegria as crianças ao mesmo tempo em que
desesperam seus pais. Antônio me ajudaria a distribui-los aos meninos na praia,
sem qualquer problema. Ele adora fazer isto, presentear as pessoas.
5 – Nas estrada, de volta a casa, compraria
um frango assado, desses de padaria, bem suculento, gordo e gostoso. Uma
coca-cola bem gelada e uma fanta uva para Antônio, porque é o único
refrigerante que ele toma, assim mesmo, uma vez ou outra.
6 – Depois do almoço-quase-janta-pela-hora, e
de um banho de mangueira no quintal, exaustos do dia, eu deitaria com Antônio
ao meu lado e dormiria profundamente, sem medo de não acordar, posto que
confiante no prazo do médico, de quarenta e oito horas. Abraçada ao corpinho
magricelo do meu filho sonharia ter a vida toda para fazer-lhe companhia.
7 – Acordaria minhas últimas vinte e quatro
horas para reeditar meus últimos capítulos. Antônio iria para a escola, desta
vez eu precisaria resolver coisas comigo.
8 – Iria a São Gonçalo dizer aos meus pais
do meu amor, da minha gratidão por viver, e por ter sido fruto deles,
justamente deles. Contar-lhes-ia da vontade de abraçá-los – a vontade de
sempre, sempre! – e o faria sem mais nenhuma vergonha ou temor. Pediria perdão,
com o coração aberto, sangrando, porque perdoando, também.
9 – Voltaria para casa fotografando as
paisagens que sempre deixo pra depois. O homem vai acabando com tudo, elas vão
sumindo do mapa e as fotos não são tiradas.
10 – Pararia mais o carro. Respiraria mais.
Abriria os braços para receber o Sol e, se chovesse, dançaria na chuva, sem
medo de molhar o banco do carro. Aumentaria o volume do rádio para ouvir
Capital Inicial celebrando a vida, comeria um pão com linguiça caprichado na lanchonete
do posto de gasolina. Talvez até pensasse numa forma de driblar o pedágio!
11 – Correria para casa e gravaria um vídeo
de adeus. Todo mundo saberia do meu amor verdadeiro, citaria os nomes dos
amigos especiais, citaria o nome dos espectros, revelaria, finalmente, quem é o
verdadeiro dono do meu coração, não o de mãe, mas o de mulher...
12 – Desceria a rua para buscar Antônio. Nada
de deveres de casa para fazermos: tomaríamos sorvete. Um, dois, três, quantos
ele pedisse, enquanto eu iria decidindo se lhe contaria do adeus ou não.
13 – Anoiteceria, e a Lua seria nosso alvo
de fotografias (Antônio é apaixonado pela Lua): diversos ângulos, pés na areia,
roupas largadas, ventinho fresco. Talvez eu escolhesse ser ali o lugar para me
despedir do meu amor, do meu presente de Deus, do meu filho. E adormecesse meu
sono eterno deitada sobre o colo dele, como fazemos aqui em casa, de vez em
quando...
Talvez se saíssemos todos com um protocolo
válido por quarenta e oito horas viveríamos de maneira bem diferente. Escolhendo
as coisas que nos fariam mais felizes, abrindo mão daquilo que não nos faz.
Esta é a verdadeira escolha da vida.
Eu listei treze coisas, que fui pensando
meio que desordenadamente. Não sei se escolheria as mesmas treze se tivesse que
reescrever o texto por uma pane no computador. Os desejos mudam. Mas do que eu
me livraria, sei bem.
Você já fez sua lista? Não, certamente.
Porque você acredita ter muitas, muitas quarenta e oito horas pela frente.
Amém!
Hoje acordei pensando no raio do relógio
grande, e na minha hipermetropia acompanhada de um astigmatismo sonhador que
não me deixa ver os ponteiros direito. Olho-os de um jeito e, logo depois, se
olho novamente, já deram voltas e voltas. Enquanto isto Antônio vai crescendo.
Enquanto isto o abraço lá em São Gonçalo não sai de jeito nenhum. Enquanto isto
monitoro a quantidade de guloseimas. Enquanto isto Antônio não fica descalço,
tampouco pega chuva ou entra com roupas no mar.
Deus me dê mais algumas infinitas horas.
Acabo de perceber que fiz muito pouco do que me dá prazer, e que se um dia esta
história de consultório for de verdade, quarenta e oito horas será muito pouco,
muito pouco para mim.
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