Nas minhas
veias corre um sangue abençoado: Há vinte e nove anos, por uma insistência de
minha mãe para que eu fosse trabalhar, sou professora.
Aqui,
neste meu diário virtual, os meus textos se completam. Mas como sempre há uma
primeira visita – graças a Deus! – preciso às vezes recontar algumas histórias,
para alinhavar meus pensamentos e, é claro, o do leitor, também...
Pois é. Um
dia minha mãe obrigou-me a trabalhar. Eu, então, optei por fazer o Curso de
Formação de Professores, para ter emprego logo. Iniciei aos quatorze anos,
concluí aos dezesseis. E, menina ainda, adentrei salas de aula, com
experiências incríveis que, costuradas umas nas outras, formaram o tecido que
hoje reveste o meu corpo. Nas minhas veias, um sangue abençoado por Deus corre
límpido, empolgado, pulsante. Meu corpo todo vibra educação. Ainda que eu tente
fugir, algo me chama: “Vem!” e... lá vou eu!
Depois de
ficar dezesseis anos trocando salas, alunos, amigos, escolas, experiências,
erros, acertos, companhia e solidão, mudei de função. O trabalho de Inspetor
Escolar permitiu-me a única coisa pela qual, depois de analisados perdas e
danos, decidi deixar a docência: a flexibilidade nos meus horários de trabalho.
Bem, agora dá para esperar o torsilax fazer efeito nos dias de dor de cabeça,
dá para esperar a chuva passar, e já não choro se perder o ônibus...
Do lado
“de cá” do balcão das secretarias, as histórias vão se perfilando na minha
cabeça, aguardando a vez de serem escritas. Histórias de pais que vejo temerem
seus filhos, histórias de filhos que vejo temerem seus pais. Histórias de
abandono, histórias de apreensão de crianças, histórias de desistência, de
persistência. Dentro de uma escola se vê de tudo. E eu, com esse meu olhar de
poeta que vigia passarinhos coloridos para fotografá-los, crio meus textos à
medida que vou fazendo a leitura da vida de cada um.
Hoje eu vi
dar passos fortes professores que insistem em fazer o seu melhor trabalho. E
percebi como eles se diferenciam daqueles que já entregaram as “armas” e desistiram
da luta. Aí, na fila do refeitório, esperando que me fosse servido o angu,
olhei um portador de sangue abençoado pisando firme nos corredores e fazendo a
diferença. Eu sinto tanto orgulho em horas assim! É como se matasse a saudade
do tempo em que eu dava passos firmes, incansável, em busca do melhor de cada dia.
Carregava para casa bolsas de supermercado cheias de cadernos e livros dos
alunos. Meu Deus, eu pegava dois ônibus para chegar à escola! Trabalhava pela
manhã e à tarde, estudava à noite, e era incansável! Meus meninos, meus alunos
foram meus amigos de verdade. A gente meio que travava um pacto em sala, éramos
todos cúmplices, dava alegria sair de casa para trabalhar. Eu gostava de ficar
no portão, para vê-los chegarem à escola. Uma vez ouvi um avô me dizer da paz
que sentia quando deixava seu neto Diego no portão e escutava o meu “vá com
Deus!”, quando voltava pra casa...
Do lado de
cá do balcão percebo tudo! A cara feia do professor que chegou querendo ir
embora – querendo nem ter chegado! – mas, principalmente, a cara bonita daquele
que chegou sorridente, com bochechas avermelhadas por um sangue abençoado. E
quer saber? Penso que não sou a única que vejo essas coisas. Penso que os
alunos enxergam muito, muito melhor do que eu.
Alunos
sabem exatamente a quantas anda o coração do seu professor. Alunos percebem
tédio, cansaço, desespero, desamor, tão bem quanto percebem amizade, carinho,
afeto, prazer, felicidade. Numa sala de aula, a gente recebe o que dá, é só
experimentar. Dá trabalho, é fato. Mas é compensador!
Nossa luta
pela valorização da profissão passa pelas veias, e não avança naquelas
entupidas pelo descaso. Só avança, só segue adiante em sangues abençoados que
correm em veias de corpos que reagem à tarefa iluminada de ensinar! De nada
adianta bater panelas ou pintar a cara na rua, sem fazer bem feito o que se faz
quando se está dentro de uma sala de aula acompanhado por crianças.
Crianças
são tudo! São seres divinos, são os verdadeiros escolhidos por Deus. Antes de
julgar e desistir, antes de tomar a parte como todo, professores de verdade
compreendem que muitos alunos são vítimas das circunstâncias em que vivem. Não
há muita opção de escolha quando se vive um inferno dentro de casa, e não há
como não reagir, não respingar nada durante as quatro horas que se passa na
escola. O corpo fala, os hormônios gritam e muitas vezes não é por falta de
limites ou educação, é pela necessidade de ser visto, ser ouvido, ser tocado.
Naquele
corredor do refeitório, o professor passou brincando com os meninos que estavam
na fila: fez cócegas em uns, bagunçou os cabelos de outros, apertou a mão do
último, e ainda brincou: “Os últimos serão os primeiros!”, disse ele, sem medir
o possível incomensurável peso de suas palavras.
Um mágico
fez apresentações no aniversário de Antônio, meu filho de sete anos. Antônio
não se lembra bem dos truques, das mágicas realizadas, mas não se esquece do
conselho que Pepper lhe deu. O mágico disse a meu filho que ele não deve,
nunca, desistir dos seus sonhos.
Vasco
Moretto, professor experiente, renomado, em suas palestras sempre comenta que
ficou inesquecível para um de seus alunos não pelas aulas de física que
ministrou, mas, sim, por ter um dia conversado com seus alunos sobre o que
pensava ser a morte.
Hoje
Antônio sonha em ser Prefeito e super-herói. E militar, e ninja, e chinês. E
sempre que eu cometo a besteira de dar a minha opinião diante de tantos
desejos, ele me cala relembrando o conselho do mágico.
Nossos
meninos e meninas estão sentados nos bancos das salas de aula, cada um com seu
sonho. Uns vão longe, outros se satisfazem com muito pouco. Interessa que
sonhem, e professores de verdade alimentam sonhos, não os destroem.
Hoje o
último menino da fila do refeitório tornou-se o primeiro. Graças a um professor
de passos firmes e sangue abençoado. Hoje até eu me repensei quando vi aquele
movimento de alegria.
Deus
abençoe absurdamente a vida dos professores que fazem do seu ofício prazer para
todos os que dele compartilham. Deus lhes abençoe o sangue, para que inunde o
organismo de maneira tal, que impregne de sentido a vida daquele menino que
muitas vezes chega morto à escola.
Hoje senti
um orgulho diferente, um orgulho que há tempos não sentia. E tive certeza de
que nem tudo está perdido, como insistem em clamar os pessimistas da classe. Há
luz, e ela nem está tão no fim do túnel assim. Obrigada, Senhor!
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