sábado, 10 de novembro de 2012

A história dela

(A história dela, só ela conhece. Mas como tem gente querendo contá-la à sua maneira, ela resolveu fazê-lo.)


Ela veio morar aqui para poder chorar. Mudou-se. Mudou sua vida por completo. Objetivo, um só: poder sofrer.
Sofreu demais até seus trinta anos. E perto de mãe, pai e irmãos não é o lugar ideal para isto. Um inchaço nas pálpebras e um nariz avermelhado delatavam a noite mal dormida, os sentimentos mais intensos, as dores, todas, que o mundo nos apresenta quando nos convida a viver...
Até os vinte anos andou pelos caminhos trilhados pelo destino, meio sem saber o que queria, para onde ia... Folha ao mar, entregou-se à direção indicada pelo vento. Estudou onde a matricularam, formou-se na profissão que lhe definiria o emprego, namorou os meninos (os poucos meninos!) que se aproximaram dela.
Nunca foi correspondida em seus amores. E, na vida, só o que fez foi amar! Os namoricos, sempre por pena dos meninos ou por medo da solidão. Reciprocidade de sentimentos, jamais.
Um dia, num susto, percebeu que havia crescido. A natureza esqueceu-se dela, apresentou-lhe as consequências de ter nascido mulher quando já ia completar seus quinze anos. E, tendo sido esquecida pela rotina do destino, tudo lhe aconteceu fora de época.
Ela tinha um quarto só para ela quando tinha vinte anos. Lá, viveu sua vida, incrivelmente diferente do que lhe compunha o DNA: comprou a TV, o Gradiente “3 em 1”, o aparelho de CD quando anunciaram a novidade tecnológica, o vídeo-cassete e, num amontoado de fios e aparelhos sobrepostos, teceu a vida um tanto sem graça, acreditando que tudo era bom. Havia músicas e papéis naquele quarto, então, havia tudo! E os diários foram companheiros daquela que sob o olhar das pessoas era uma moça de vinte anos, mas, ajoelhada aos pés da cama não passava dos quinze...
Da Remmington 22 para os cadernos, pouca coisa mudou. As confissões sempre foram as mesmas: o coração acelerado por ter visto o amado, o coração apertado por ter ouvido palavras duras dos pais (ela nunca os respondeu, os contestou), o coração entristecido por uma briga com a irmã. Sua janela ficava bem de frente para a rua. As gargalhadas gostosas dos meninos e meninas que curtiam a vida penetravam seu espaço, sua intimidade... Às vezes punha a caneta na boca e sonhava um pouquinho fazer parte daquele grupo lá fora, viver...
A hora certa para chegar em casa, quando aparecia um programa à noite para fazer, significava deixar tudo pelo meio: a conversa com amigos num barzinho, o show do cantor que acabara de começar... Em algumas ocasiões desistia de ir: “vou chegar e ter que sair na mesma hora”...
Num certo período ela descobriu o cinema. Nesta época era perfeitamente possível vê-la sair de uma sessão do Central e apressar-se para pegar a que iniciava no Odeon. De volta à casa, dentro do ônibus, às vezes nem se lembrava direito dos filmes que assistira... A intenção nem era esta. Tanto que por muito tempo fez as viagens de ônibus para a cidade vizinha só com o objetivo de voltar. Descia no terminal rodoviário, atravessava, e tomava outro ônibus a caminho de casa. Sim, ela fez isto alguns fins de semana seguidos...
Ela não era feliz, mas achava que era. Resolvia o problema de ter que ficar em casa trancando-se em seu quarto, ou gastando dinheiro à toa rodando catracas de ônibus e cinemas.
Assim, seu tempo foi passando, entre uma tentativa e outra de ser feliz. Até que começou a passar dos vinte anos, e ninguém havia lhe aparecido acenando com a possibilidade de casamento. E, assim como o convite ao trabalho aos catorze anos, sua mãe iniciou a cobrança: “não vai casar?”
Quando a oportunidade de se casar surgiu, ela não hesitou, e aceitou o convite, de pronto, mesmo tendo conhecido o “corajoso” há pouco tempo. E entre conhecê-lo e ser a mulher dele, passaram-se estranhos oito meses.
Com um ano e meio de casada percebeu que havia errado em sua decisão, sua escolha, sua renúncia, sei lá. Teve vergonha, no entanto, de desfazer o que havia feito. Passou, então, a sobreviver, a mentir, a fingir, a sorrir sem vontade, e a fazer todas aquelas coisas que quem mantém uma vida falsa faz. E cinco anos se passaram deste jeito, e foi tudo tão rápido que numa manhã de novembro ela percebeu que já tinha trinta anos, e que os cadernos estavam lá, lhe servindo como diários, novamente. Viu-se ajoelhada na cama a revelar segredos de uma jovem adolescente, viu todas as suas carências latejando num coração que, pela lógica, deveria ter um par. A Remmington 22 deixada de lado, o computador compartilhado que não lhe garantia privacidade, e os cadernos lá, do mesmo jeito, dando conta de uma menina-mulher infeliz, sozinha como sempre foi.
Durante todo este tempo, impossível chorar. Ela não abriu seu coração, não sofreu “por fora”, porque seus olhos inchados e seu nariz vermelho denunciavam tudo, no dia seguinte. E pai e mãe e irmãos sempre enxergam os vestígios do sofrimento quando é o mesmo sangue que corre nas veias. Ter que explicar a razão da dor de cabeça, das lágrimas, do cansaço do coração fazia com que tudo lhe fosse oprimido no peito, a ponto de ela viver sorrindo: “Está tudo bem”!
No sábado em que ele foi embora, ela não chorou. Estava almoçando com a família e chegou a ensaiar um “até que enfim!” nada verdadeiro, porém convincente, no meio de um churrasco... Era novembro, ela era professora. Trabalhou aquele finzinho de ano gabando-se da separação. Todos tinham que testemunhar-lhe a felicidade. Enganados pelos sorrisos falsos dela – ou por não se interessarem em saber-lhe do real sentimento – diziam-lhe poucas palavras, nada acalentadoras.
Os choros às vezes vinham sob a água do chuveiro. Naquele último banho, antes do sono, para ninguém ouvir, nem saber. Foram poucos, ela morava pertinho dos pais...
Quando janeiro chegou, foi muito difícil. Dias inteiros em casa, de férias. As paredes, os móveis, as coisas que não foram levadas, as coisas que foram esquecidas, tudo isto pesava-lhe o peito, trazendo remorso, vergonha, tristeza, saudades do que poderia ter sido e não foi.
Até que um telegrama mudou-lhe a vida: uma chamada do concurso público que havia feito para uma cidade distante presenteou-lhe com a possibilidade de poder sofrer.
Ela veio morar aqui para poder chorar. Mudou-se. Mudou sua vida por completo. Objetivo, um só: poder sofrer.
Veio morar sozinha, encher a casa de lágrimas, inundar o travesseiro sem preocupar-se com o que dizer no dia seguinte. Ninguém nunca lhe perguntou... Tendo sofrido, renasceu. Tendo renascido, foi feliz. Tendo sido feliz, foi mãe. Agora vive sob a bênção de um Deus que reservara para ela um destino muito diferente, e ela nem sabia!... Seu destino agora é ser feliz. E por receber de Deus tão magnífica missão, procura levar a felicidade para aqueles que a rodeiam: respeita-lhes os choros, as dores, diz-lhes a verdade, mantém com eles a palavra, cumpre-lhes as promessas, estende-lhes a mão. Veio pra cá para amar de verdade, para anunciar seu amor. Veio para ser amada verdadeiramente, e por isso dobra os joelhos no chão e agradece ao Senhor seu Deus, todos os dias de sua vida.
É a história dela. Contada por ela.

12 comentários:

  1. Nossa!! Arrepiada de emoção!! Saudades!! Bj.grande.

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    1. E você conviveu com parte dela, Regina...
      Saudades, também. Bjs.

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  2. A história dela contada por ela é a melhor história que conheço dela. É ela!!!

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  3. Uauu,que história!!Chorando até agora e conhecendo mais um pouco dessa mulher linda,inteligente ,sensível e corajosa .Vitoriosa!!!Parabéns Karla,amiga minha!!!

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    1. Glorinha, a gente é testemunha de que se conhece todo dia... Rs.
      Obrigada!

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  4. Música - Desenho de Deus
    Quando Deus te desenhou
    Ele tava namorando.....
    Papai do céu na hora de fazer você
    Ele deve ter caprichado prá valer
    Botou muita pureza no teu coração...
    Existem várias karlas aqui...Vitoriosas sim...bjs amiga!!!

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    1. Do lado de fora da tela há várias, também, minha amiga! Graças a Deus!!!
      Bjs.

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  5. História fantástica Karla!!! Parabéns.

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  6. Vidas semelhantes. Por isso sou educadora. Para amar e ser amada. Chorar de tristeza, de preocupação, de amor pelas minhas crianças que merecem cada uma das minhas lágrimas e cada um dos meus sorrisos.

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  7. Acho que tornei-me Professora por isto, também...

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