sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Uma ida ao supermercado

(Eu desci a rua para comprar pães. E tudo o que vi lá fora foi poesia!)


Eu desci a rua para ir ao supermercado. Desci bem cedo. Nestes dias de feriadão, é bom garantir a hibernação: a cidade é deles, dos turistas, tenho o resto dos dias para curti-la...
Passei pela casa onde fica o Malhadinho e não o vi. Com certeza, está dormindo um soninho gostoso, ainda. Eu é que me adiantei.
Quando cheguei em frente à lagoa, o presente de Deus: água parada, que mais parecia uma moeda gigante, prateada, reluzente. O céu acinzentado dava-lhe maior beleza! E o peso das nuvens que anunciavam a chuva trazia tristeza para o olhar da família que estacionava o carro com destino à praia, mas enchia de alegria o coração de dois pescadores que, num barquinho simples, simples, de madeira pintada de azul, jogavam suas redes numa cena que merecia uma fotografia!...
Eu não desci com a digital. Tenho que me acostumar a fazê-lo. Perdi muitas fotos! Na ânsia de não pegar fila no supermercado levei o básico – chaves, carteira, celular – e deixei o essencial em casa: minha máquina fotográfica.
Ela me completa. Minha Sony. Velhinha, ultrapassada, congela todas as imagens que gosto de ver. É minha parceira. Às vezes, perde-se, entre mim e Antônio. Eu, tirando as mil fotos dele, e ele, agora, tirando mil de mim...
Aqueles pescadores se eternizariam na minha caixa de fotografias, e nem sabem! Sim, eu revelo as fotos! Faço isto uma vez por mês, e é sagrado. Porque para além de capturar as imagens que meus olhos veem, gosto da foto impressa, do papel em minhas mãos... Não me deixei levar pela praticidade do arquivamento em CD ou DVD, ou pasta no PC: revelo e guardo, faço murais. As fotografias são uma alegria na minha vida! E hoje já teria aqui, prontos para serem “revelados”, os moços do barquinho azul com listras brancas, o movimento de lançar as redes, o movimento de trazer pra si o alimento e o sustento: a alegria!
Quando os vi, lembrei-me de Antônio. Sempre que passamos cedo pela lagoa e observamos os pescadores, canto para ele a música de Dorival Caymmi: “Minha jangada vai sair pro mar/Vou trabalhar meu bem querer/Se Deus quiser quando eu chegar do mar/Um peixe bom eu vou trazer/Meus companheiros também vão voltar/E a Deus do céu vamos agradecer...” Ele gosta, fica emocionado. Eu também. Acho que nunca cheguei ao fim da música sem ter a voz embargada...
Segui caminho. Precisava chegar ao mercado cedo, antes que lotasse! Quem mora em cidade que recebe turistas num feriado como este sabe bem o que são as filas dos mercados nesta época!
Fiz as compras – garanti uns pães fresquinhos! – e iniciei a “viagem” de volta para casa. Um caminho de pouco mais que um quilômetro, mas que, dependendo do meu estado de inspiração, é suficiente para me render um texto de pensamentos...
Na volta, vi movimento no Cemitério Municipal. Eu moro perto. E impressionou-me a ausência de carros por lá. Sabe o que eu vi? Um monte de bicicletas estacionadas! Eram mais de vinte, num colorido de trazer beleza à cena num local onde o que se sente é tristeza e dor. Um colorido humilde, que se fazia presente entre as cores descascadas das bicicletas, suas ferrugens e seus embrulhos... Ali vi gente muito modesta, com casacos que revelavam terem passado a madrugada aquecendo corpos frágeis... Esta noite foi de chuva, deve ter sido difícil ficar por ali...
Novamente apalpei o banco do carona do carro à procura da minha digital, inutilmente. Ela fica sempre ali, naquele lugar estratégico, de onde só retiro para eternizar os cenários que componho. Mas eu havia deixado a máquina em casa... Tudo o que eu queria era uma foto que perpetuasse aquilo que vi no Cemitério: uma pobreza recheada de uma riqueza sem fim: lenços coloridos nas cabeças das mulheres, casacos contrastando com pés descalços, chapéus de palha inocentes nas cabeças dos homens e muitas, muitas bicicletas. Nenhum carro. E foi a primeira vez que vi isto por lá.
Entrei na minha rua, e quando passei pelo valão (é o nome que damos por aqui, não há outro) uma garça branca maravilhosa aterrissava. Pousou elegantemente na margem e procurou peixinhos para se alimentar. Eu me lembrei do pássaro da Arca de Noé. Depois de tantos dias e noites de chuva, o assento daquela garça sinalizava que as coisas estavam melhorando. Ela era linda! Imponente, desconhecia o terreno em que pisava. Não lhe era importante saber onde estava, era majestosa por si mesma, onde quer que estivesse!
Subi a rua – as montanhas de Antônio! – e entrei em casa. Fui recebida pelo par de rolinhas que entenderam o sinal da garça e deixaram seus ninhos. Escrevendo agora, ouço outros sons, dos diferentes passarinhos que habitam nas minhas amendoeiras... E um solzinho atrevido que brinca com algumas gotas de chuva assanhadas, me traz a certeza de que daqui a alguns minutos verei completa a obra de Deus, já que Ele me fez pensar na Arca: Haverá um arco-íris lá fora, ratificando a promessa da Sua aliança comigo. E estarei no quintal, para recebê-lo e fotografá-lo. E suas sete cores inimitáveis trarão conforto ao Malhadinho, àquela família que pretendia banhar-se na lagoa, àqueles pescadores que garantiram o seu dia de hoje, às famílias que choram pelo ente falecido, à garça, às rolinhas, a mim, e a você que me lê agora. Deus é fiel. Bom dia!

6 comentários:

  1. Como sempre, singelamente lindo! O cotidiano nosso de cada dia é imprevisível. Claro que se fosse previsível, sairíamos munidos de "Minha Sony. Velhinha, ultrapassada, congela todas as imagens que gosto de ver". Só que penso, que o previsível, o rotineiro nos tira a vontade, o ímpeto de fotografar, registrar. O imprevisível não. O imprevisível é interessante, é o que não sei, o que pode vir a ser, o que, se acontecer, estarei com a velha Sony para registrar. Portanto, preste atenção moça, próximo feriado vá comprar pão com o Antônio e não esqueça a sua velha companheira em casa, pois o IMPREVISÍVEL é assim: de repente... tchan-tchan-tchan-tchan... tal qual uma metamorfose, acontece o PREVISÍVEL e o IM se vai!
    Beijos!!!

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    1. Pois é, amigo! Falhei. Mas, pensando por outro lado, talvez se tivesse fotografado tudo o que vi, o texto não acontecesse. Quem saberá? Rs. Beijos!!!

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  2. Que texto! Escrito com detalhes tão ricos, com os olhos da alma que, lendo cada palavra, cada linha, senti como se eu estivesse ali, olhando e percebendo tudo... Viajei! Gosto disso. Parabéns!Obrigada, querida Karla, por este momento único. Bjs

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    1. Que beleza vê-la por aqui, Roseli! Fico prosa, prosa...
      Acho que, desta vez, até eu viajei para ir ao mercado... Rs.
      Não me agradeça. Isto, eu é que tenho que fazer! Bjs.

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  3. olá, é a 1° vez que visito seu blog, acabei caindo aqui sem querer, para minha sorte, e confesso que nunca tinha lido um texto com tanta perfeição, tantas riquezas, em palavras, que nos faz viajar junto com você, nessa ida ao supermercado. parabéns, acaba de conquistar mais um leitor...
    abraços...

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