Já
faz uns dias venho pensando na frase que dá título a este texto... Qual será o
mistério da escola?
Estou
trabalhando no turno da noite, agora. Sentada diante do balcão de atendimento da
secretaria, percebo cada um que chega. Analiso os rostos com meus pensamentos
que não param. Tento adivinhar-lhes as histórias, tento descobrir as razões que
fizeram com que aqueles donos dos rostos chegassem até lá. Qual será o mistério
da escola?
Os
rostos brilham o cansaço da lida do dia. Ultimamente tem feito dias
intensamente quentes, as pessoas chegam ao balcão com aparência cansada, triste,
dolorida. Mas chegam. Querem se matricular. Qual será o mistério da escola?
Fico
recordando o tempo em que estudei à noite. Lecionava nos dois primeiros turnos
e ia para a Faculdade no terceiro. Mas eu era jovem, e já estava concluindo
meus estudos. A hora era aquela, eu não queria deixar para depois. Tive ânimo,
uma juventude saudável permitiu-me formar-me Pedagoga. O cansaço só se deu,
mesmo, nos últimos períodos, mas eu consegui ir até o final.
Hoje,
quando chego à escola onde trabalho à noite, vejo uma gente bem diferente do
que eu era. Aquela gente pegou pesado durante o dia. São pedreiros,
comerciantes, faxineiras, ambulantes, mecânicos, carpinteiros, garis, cozinheiras.
Chegam com seus cansaços nos ombros. Debruçam-se no balcão. Nada dizem. Muitas
vezes a matrícula só se concretiza graças à paciência e delicadeza com que o
pessoal da secretaria os atende.
Falam
baixo, escondendo a boca com as mãos. Muitos não têm dentes. Alguns nada falam,
pelo simples motivo de não saberem se expressar, se comunicar. Dizem palavras
soltas, contando suas histórias e, aí, nossa experiência na profissão vai
costurando os remendos e tecendo a vida que viveram: não frequentaram escola. Evadiram
muito cedo, para trabalhar com os pais. Foram reprovados inúmeras vezes e,
então, desistiram. Dormiam demais durante as aulas e a professora sugeriu-lhes
deixarem a escola. Precisaram largar a escola para cuidar dos filhos e, depois,
dos netos. Não havia lugar para estudarem perto de casa. Não havia transporte
para os conduzirem à escola mais distante. Filhos doentes em casa não
possibilitavam tempo para dedicarem-se aos estudos...
São
muitas as histórias. Gente que veio de longe, de outros estados desse enorme
Brasil, e que lá deixou sua documentação perdida em casa ou em escolas que já
nem existem mais. Escolas fecharam, foram incendiadas, inundadas, levando vidas
embora no esgoto ou na fumaça. Simples, assim, como são levadas as vidas deles,
dessa gente que hoje procura, misteriosamente, a escola para estudar. Qual será
o mistério da escola?
É
uma gente que não nos olha nos olhos. Mantém a cabeça baixa. Tem vergonha do
que é. É uma gente que nos chama de “senhor” e de “senhora”. Alguns arriscam
até um “doutora”... Ficam nos cantos do balcão. Querem se esconder. Querem que
tudo aquilo ali acabe logo, porque querem ir para a sala de aula. Lá estão os
seus iguais, a gente da mesma forma analfabeta, cansada, igual. Ali na
secretaria as “professoras/senhoras/doutoras” sabem escrever, podem, então,
descobrir seus segredos, descobrir que nada sabem. Nada.
Aquela
gente cresceu e internalizou que nada sabe, de tanto que ouviu as pessoas “que
sabem” lhe dizerem isto: os pais, os companheiros, os professores, os patrões, os
filhos...
Há
gente lá que encosta-se ao balcão para dizer que não quer passar de ano. Quer
ficar com a antiga professora, quer aprender melhor o que julga que não
aprendeu. Não quer ir adiante.
Todo
mundo tem vergonha daquilo que intimamente conhece de si mesmo e acha que é
defeito. Aquela gente toda a se aproximar do balcão às dezenove horas é o
próprio defeito ambulante. Não existe autoestima, não existe amor próprio. E é
a escola que eles procuram, sem nem saberem por quê.
Nós
somos o mistério dessa gente de rosto brilhante. Em nós está a esperança de
dias melhores. Aqueles adultos que chegam dispostos a destinarem a hora mais
sagrada do seu dia – a hora que poderia ser do descanso! – o fazem por julgarem
sermos nós a saída para um pouco mais de conforto em casa, um salário melhor,
uma imagem menos dolorosa no espelho.
A
escola ergue o queixo dessa gente, que só olha para o chão. A escola os
dignifica. Abençoados somos nós, professores, que lidamos com aquilo de que o
tempo passado se desfez.
E
eu me orgulho muito dos colegas que seguram a mão dessa gente. A tremedeira
passa, o medo vai-se embora, a segurança vai conquistando espaço e a
aprendizagem começa. Começa pelo afeto. Pelo segurar das mãos, pela presença ao
lado, pela palavra que estimula, que convida a ficar.
Essa
gente fica. Com o tempo, começa a sorrir, mesmo que lhe faltem dentes. Com o
tempo, percebe-se. Passa a ter coragem de se olhar no espelho, reconhece-se no
meio da multidão.
Eis
o mistério da escola. É o nosso mistério, o mistério do professor responsável,
comprometido: a gente consegue fazer com que essas pessoas que se perderam no
tanto que viveram encontrem-se novamente. E o mais bacana disto tudo é que eles
se tornam nossos amigos, quem já passou por isto sabe. São uns amigos
agradecidos, fiéis, uns verdadeiros admiradores de nossa profissão. E é por
eles que cultivamos o nosso orgulho de sermos PROFESSORES, ainda que o sistema
nos atravesse com a forma quase indecente com que nos trata.
Dedico
este texto a todos os Professores que se identificaram com ele. Não sei se lhes
digo obrigada ou parabéns. Acho que vocês merecem tudo! São profissionais
verdadeiramente abençoados! E fica aqui o meu desejo de que leiam este meu
carinho antes que a noite chegue.
Hoje
é dia de aula. Deus os recompense pelo mistério do ofício!
Karla, seu texto exprime uma realidade que muitas vezes vivenciamos e não nos damos conta. Voltei no tempo pois já dei aula para o "MOBRAL" e revivi aqueles momentos, lembrando de cada detalhe, revendo aqueles rostos, histórias de vida, enfim uma retrospectiva fascinante! PARABÉNS AMIGA! Cada dia você se supera!
ResponderExcluirObrigada, Cleuza! Muito honrada com sua presença constante!!! :)
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