O sol entrava pela janela da cozinha, mais
ou menos às três da tarde. Eu adoro quando consigo flagrar o sol a essa hora,
lá na cozinha da casa da minha mãe. Era assim, também, quando eu morava na casa:
é que ele entra dividido – ou multiplicado? – pelas grades do basculante, tudo
fica lindo lá! Reluz nos talheres secando sobre a pia... Erico Veríssimo
descreveria a cena bem melhor que eu. Na verdade, acho que passei a admirar a
cena depois que li Erico Veríssimo... Mas a oportunidade de ver o sol às três da
tarde na cozinha sempre foi pouca. Primeiro, porque eu estava sempre
trabalhando, longe, muito longe a essa hora. Segundo, porque nos fins de semana
eu dormia, certamente.
Papai comia castanhas, cutucando a tigela
branca que só é vista às vésperas do Natal. Castanhas deliciosas, feitas por
minha mãe. Boné na cabeça, roupa de casa, e aquelas mãos inesquecíveis, de
dedos tão tortos que hoje ninguém é capaz de acreditar que um dia ele foi um
excelente mecânico!
Do outro lado, atento, o pai de Antônio.
Ele gosta de instigar meu pai a contar suas histórias, sabe que isto lhe dá um
prazer imenso. O sol demarcava os dois. Eu e minha mãe arrumávamos a cozinha, havíamos
acabado de almoçar.
Papai contava as aventuras de um grupo de
rapazes com suas bicicletas e, posteriormente, suas motos. Cheguei a ouvi-lo
dizer, entre uma passada pelo corredor e outra, que por várias vezes saíram de
Niterói com destino à Petrópolis, Teresópolis, Friburgo pedalando! Sim, isto
mesmo! Decidia, nos fins de semana, a rapaziada, que destino tomar. Eram
jovens, portanto ágeis, ousados, independentes, felizes, corajosos! E se a
maioria optasse pela serra, lá iam os destemidos desbravá-las. Uma rápida
conferência nos freios no Cicle do meu avô, e pronto!
Foram muitas as aventuras sobre os pedais e
as duas rodas. Os meninos cresceram, trabalharam, juntaram dinheiro e
conseguiram retirar das vitrines e levar para a garagem de casa as tão
desejadas Harley-Davidson. Uma mais bonita que a outra, causavam suspiros das
mocinhas do bairro. Sim, elas, as motos, muito mais que os rapazinhos... Minha
mãe sempre enfatiza isto, para deixar meu pai sem jeito... Uma brincadeira
gostosa, da qual morrerei de saudade quando não os tiver mais por perto.
Eles viveram numa época em que não precisava
ser tão rico para ter uma Harley-Davidson. Bastava trabalhar e economizar o
salário. E foram adquirindo, aos poucos, os frangotes, suas possantes máquinas.
Uma castanha, uma história, outra castanha,
outra história. E ver papai separar as cascas das castanhas da tigela me fez
lembrar imediatamente daquela cena do cordãozinho com nó a ser desatado por
suas mãos, que eternizei no texto “Meu
pai que a escola excluiu” e deve estar por aqui, lá atrás, neste blog. Naquele
dia, era uma agulha. Neste, cascas de castanha...
Lembrar do grupo de amigos o deixou
emocionado. Se iam para tão longe em bicicletas, o que não passaram a fazer
sobre os roncos de suas motos?
Foi aí que ele resolveu contar da vez em
que um dos amigos caiu da moto e foi atropelado pelo bonde, em Niterói.
Todos os que vinham juntos pararam imediatamente
para socorrer o amigo, que acabou por ficar bem embaixo do bonde. Correram
todos, seguraram o veículo e o mantiveram parados, enquanto meu papai o puxava
para fora dali. Mas o peso era muito, os meninos não suportaram por longo tempo,
e uma descida abrupta – a rua onde estavam era uma ladeira – fez com que as
rodas do bonde cortassem um dos braços do rapaz. Meu pai gritou, mas ninguém
conseguiu conter a força do peso do bonde, que seguiu o caminho dos trilhos
arrancando-lhe o outro braço também.
Eu fiquei olhando papai contar aquela tragédia.
Ele mal conseguia falar. Quando as lágrimas lhe chegaram aos olhos, brilharam
na intensidade do sol do basculante. E eu pude ver, creiam, o reflexo amarelo
do sol e do vidro que cobre a janela, no rosto molhado do meu pai. Foi um
instante único, que jamais se repetirá. Numa das idas e vindas no corredor que
dá acesso à cozinha, ajudando a minha mãe com as coisas, eu as vi: as lágrimas
de diamantes do meu pai.
Ele cobria o rosto, acho que envergonhado.
O pai de Antônio sacudiu-lhe o ombro, num “deixa
disso, Sr. Walter” mais lindo que já vi na minha vida! A verdade é que meu
pai vivia aquilo ali, naquele instante. E eu assisti àquilo tudo, agradecendo a
Deus, mais uma vez.
Impossível segurar a emoção e não chorar
também. Agora mesmo, ao escrever sobre o que aconteceu, sinto os olhos
marejados.
Meu pai está com setenta e oito anos.
Certamente era o mais novo da turma da época. Há quanto tempo aquelas
lembranças dolorosas marcam presença no seu coração? Sessenta anos? Quanto
tempo dura uma lembrança?
Aquelas lágrimas de diamantes saíram dos
olhos de um rapaz de dezoito anos que não conseguiu salvar um amigo de um
acidente que poderia ter ocorrido com ele. Saíram ao lembrar o seu desespero, a
sua dor, o seu lamento. Naquele momento meu pai tinha dezoito anos, estava
sentado à mesa da cozinha, comendo castanhas e sofrendo com a gente porque não
conseguiu segurar o bonde...
O rapaz sobreviveu. E virou o herói do
grupo. Secando as lágrimas meu pai contou que, embora tenha ficado sem os
antebraços, o garoto pilotava motos melhor do que muitos de seus amigos.
Exibia-se. Fazia graça. Coisas de uma época da vida em que se faz limonada de
cada limão que se recebe.
Numa das viagens às cidades da Serra, foram
parados por uma blitz. Papai contou que um policial parou todo o grupo e, tendo
comparado o número de motos ao de pilotos, concluiu que uma delas estava sendo
conduzida pelo rapaz sem os antebraços. Passou um “sabão” em todos e duvidou
que o menino pudesse conseguir pilotar, naquele estado. Desafiou-o, então,
ordenando-lhe que subisse, assumisse a direção da Harley e desse uma volta,
garantindo-lhes que se ele conseguisse, liberaria o grupo.
Voltaram para casa, todos, depois da
demonstração de coragem de um jovem que não tinha o corpo inteiro, mas era
feliz e determinado, assim mesmo.
Olhar para aqueles braços incompletos todos
os dias, e lembrar de tudo o que aconteceu, fez daqueles meninos que compunham
o grupo homens de verdade. O exemplo, o ensinamento de Deus, não foi só para
quem caiu sob o bonde. Foi para cada um deles. E, sessenta anos depois, para
mim.
Velhos choram lágrimas de diamantes. Ou
será de outro valor a lágrima que escorreu dos olhos do meu pai?
Deus me permita aprender sempre. Ouvir
sempre. Perpetuar no coração de Antônio as histórias que ouvir dos meus pais,
tios, amigos mais velhos. Viver é isto. Nada mais do que isto. Quero ter
histórias para contar, também. Porque ter histórias para contar é um sinal de
que se viveu. E quero muito, muito, viver!
Agora sou sua seguidora do blog. bjs
ResponderExcluirSó tem preciosidade de textos aqui, cara, tô pasma! seguidora.........amante das leituras! SHOW
ResponderExcluirIdoso = início/meio/fim *** uma história construída e deixada aos jovens!
Feliz demais! Obrigada, Ieda!
ExcluirLindo, muito lindo! Sem palavras para esse texto.
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