Ele pediu ao garçom mais duas
garrafas daquele vinho branco. Quis levá-la consigo, quando o bar fechou. Já
não sabia que horas eram. Deixou sobre a mesa algumas notas, uma gorjeta boa, e
saiu por último, quando ouviu o barulho de portas de ferro arriando...
Estava tonto, perdido, e a
quantidade de álcool ingerida não era a única responsável pelo estrago: seu
mal-estar acontecera desde a hora em que percebera que ela não era mais sua.
Camila cansou-se. E decidiu aceitar o convite da vida para vivê-la.
Seus passos encontraram o carro. E a
mão, apesar de trêmula, encontrou a ignição. Deu partida, acelerou pouco (ele
sabia do seu estado) e experimentando um caminho diferente conseguiu, depois de
alguns minutos e voltas desnecessárias, chegar ao local que queria: o alto do morro,
de onde via a casa dela. Parou, desceu do carro, sentou-se no capô e procurou,
com os olhos semicerrados, as luzes brancas da varanda da casa amarela da rua
defronte à praia. E tão logo as avistou, chorou.
Das quatro lâmpadas, apenas uma
acesa. André olhou o relógio: pela hora, Camila dormia. Sentiu saudades do seu perfume,
o mesmo de sempre, de há oito anos. O mesmo que sentia quando ela passava por
ele e ainda nem sabia do amor que lhe incomodava o peito. Aquele perfume que,
tempos depois, impregnado em sua camisa, transportava para a sua casa as
lembranças boas dos momentos que passavam juntos. Aquele perfume que jamais
deixaria o seu olfato e que, justamente naquela noite e naquele momento, era
possível sentir, mesmo a uns bons quilômetros de distância.
Uma única lâmpada acesa. Mas o
suficiente para que o desejo de invadir aquela casa alimentasse seus
pensamentos. E André via Camila dormir entre uma e outra sacudida das cortinas
de seu quarto.
Sua vontade de estar lá ao lado dela
o fez pegar outra garrafa do vinho. Olha o rótulo: era o único que Camila
gostava. Branco. Somente daquela marca. Ela tinha umas manias muito estranhas.
Só daquele vinho. Não experimentava qualquer outro. Brigaram muito por conta
das manias de Camila. E agora, tudo o que ele queria era estar ao lado dela.
Com duas garrafas do seu vinho preferido, não havia mais nada a fazer: Camila
lhe disse adeus. Ela se cansou.
Durante os oito anos em que estiveram
juntos, ela se anulou. Desde que se conheceram, desde que André lhe confessou
estar apaixonado, Camila lutou por manter acesa uma chama que teimava em apagar
todas as vezes que as atitudes estúpidas do seu amado a magoavam: um ciúme
doentio quando estavam em companhia de amigos, um descuido com as datas que
marcavam coisas simples como o dia do encontro, do primeiro beijo, da primeira
ida ao cinema, o primeiro mês de namoro... E, enquanto o tempo ia passando, a
monotonia foi tomando espaço naquela casa onde os dois haviam vivido tanto
amor! Por muitas e muitas vezes Camila tentou reverter a situação, sem
conseguir bons resultados.
André acostumou-se a ter Camila. Não
viu que o tempo passou, não viu quando ela sofria. Não viu que ela estava
cansada. Não viu nada. Até que naquele dia ouviu o que não imaginava: um adeus de
cinco letras e decisão tomada. Fechou os olhos depois que se deitou sobre o
capô e o filme da despedida correu-lhe na memória. Ela lhe disse que chegara a
hora de cada um seguir com sua vida, sem o outro. Ele riu. Camila de vez em
quando vinha com essas “histórias”... Ela o deixou rindo na mesa do barzinho e
se levantou. Ele olhou para o relógio contando os segundos para que ela retornasse,
como aconteceu outras vezes... Está no capô do carro agora, no alto do morro,
olhando para a casa dela. Camila não voltou. Desligou o celular. Não vai voltar
atrás, desta vez.
Ele troca a garrafa vazia pela
cheia. Desta vez, não bebe. Relembra as palavras daquela que foi a única mulher
a quem amou, e que lhe amou verdadeiramente. Lembra da roupa que ela vestia, e
só então percebe que era uma roupa diferente – mais bonita! – e que ele nem
comentou quando ela chegou. Dá-se conta, também, de que os cabelos dela desta
vez estavam soltos, coisa que muito pouco fazia. Camila tinha cabelos lindos,
que enfeitavam ainda mais seu rosto, seu sorriso! Como pôde ter sido tão
canalha a ponto de nem fazer-lhe um elogio?!
Camila – e aquela beleza e
inteligência toda – era de André. Foi dele por oito anos. Linda, educada,
dinâmica, batalhadora, dona de qualidades que a faziam ser desejada por
qualquer homem que dela se aproximasse. Totalmente fora dos parâmetros indicados
hoje para uma mulher, Camila tinha quilos de sobra e, no entanto, era fabulosa!
Já tinha mais de quarenta anos, e era fabulosa! Porque era extremamente
inteligente e romântica, o que a tornava uma mulher altamente sedutora. Camila
era de André, de mais ninguém.
A garrafa, a última, ainda cheia,
foi deixada à beira da rua, no alto do morro. André chorou lá suas dores, seu
arrependimento. Perdeu a mulher amada. Perdeu aos poucos, desde que a
encontrou. Doeu, saber disto. Camila lhe disse todas as verdades, num português
tão correto que foi impossível André não entender. Olhando dentro dos seus
olhos ele viu que aquela não seria só mais uma briga.
De dentro do carro, descendo o
morro, dá adeus à casa dela. Não sabe que destino tomar, deixa o carro guiá-lo.
Acordou com dor no corpo, adormeceu
no carro, mesmo. Espantou uns mosquitos e olhou em volta para ver onde estava.
O movimento da cabeça doeu-lhe o corpo todo: efeito do vinho! Espantado,
percebeu que estava em frente à casa amarela, a casa de Camila. Abriu a porta,
saiu do carro, esticou-se, estalando os joelhos. Olhou a garagem e não viu o
carro dela.
Uma Camila refeita e decidida saiu
pela manhã para trabalhar. Retirando o carro da garagem, avistou André dormindo
dentro do carro dele. Nada fez. Continuou seu trajeto, deixando-o lá, arremedo
de homem arrependido, morto.
Ela está feliz, orgulhosa de si
mesma: resistiu, desta vez, e é só o começo da vida nova que prometera diante do
espelho.
Ele olha o vazio da garagem. Perdeu
Camila. Deixa a cópia da chave na caixa do correio, abismado. Ao contrário
dela, está triste e envergonhado. Ajeita o retrovisor, mas evita olhar o
espelho. E ainda que o fizesse, não veria imagem alguma. André já não é mais
ninguém, enquanto Camila renasce.
Como diz minha princesinha de 14 anos e o(a)s meus/minhas orientando(a)s com a mesma idade, "caraca, Karla, essa Camila é osso duro de roer, hein!". Completo, afirmando que a personagem muitas vezes é o reflexo do autor. Tenho como alicerce o pensamento de Mikail Bakhtin. Segundo ele, "autor e personagem precisam ser relativamente autônomos em relação um ao outro, o que significa, mais claramente falando, que ambos não devem se confundir nem um deve se submeter ao outro dentro da obra literária"¹
ResponderExcluir(O autor e a personagem na atividade estética).
Não arrisco, nem ouso e nem gostaria que me acusassem de tentar invadir o campo da psicanálise. Longe de mim tal pretensão, tal presunção. Mas, que Camila parece sua irmã, não tenho dúvidas disso.
Outra coisa em relação às manias de Camila, pela narrativa, tenho certeza de que ela iria me odiar por muitas atitudes estúpidas.
No fundo já estou achando que André é meio que meu ídolo; se não vejamos: (...)descuido com as datas que marcavam coisas simples como o dia do encontro, do primeiro beijo, da primeira ida ao cinema, o primeiro mês de namoro..."; entretanto, não chego a ser tão canalha quanto ele a ponto de não fazer elogios e por aí vai.
Sou pela autonomia, pelo livre arbítrio. Não se pode forçar barra, quando não há mais condições de seguir em frente.
Enfim, Bakhtin é maravilhoso, você não acha? Sujeitinho dedo duro, não? No mais, que fique claro, que quem sustenta esse rolo doido entre personagem/autor, tipo um é o reflexo do outro, o alter ego do outro, é BAKHTIN.
Beijos!
Fonte: http://pt.shvoong.com/humanities/linguistics/1834164-autor-personagem-na-atividade-est%C3%A9tica/#ixzz2E26STy5N
Fonte:
¹.http://pt.shvoong.com/humanities/linguistics/1834164-autor-personagem-na-atividade-est%C3%A9tica/#ixzz2E2503zbI
Rs. Vá consultando Bakthin, amigo, enquanto houver dúvida...
ResponderExcluirAinda nem nos conhecemos pessoalmente! Rs. Obrigada pela visita!
Obs.: Camila não é tão durona, assim... Foram oito anos! ;)
Vez ou outra Bakhtin toma umas taças de vinho comigo. Tem um pequeno problema: quando bebe além da conta, viaja na maionese! Apesar e além disso, é muito gente boa!
ResponderExcluirBeijos!
Um tanto fofoqueiro, eu diria... Rs.
ExcluirBeijos.