terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Valer a pena

(Às vezes me envergonho de ser Escola...)


O que será que pensam as pessoas no momento do seu último suspiro?

Venho pensando nisto desde que passei pela estrada, ontem, a caminho de casa. Fiquei alguns minutos presa num engarrafamento na rodovia. Quando a passagem foi liberada, dezenas de homens fortes num uniforme cor de abóbora reluzente davam conta, com seus corpos sujos e suados, de um Brasil desrespeitado.

Então, me envergonhei de ser escola. Isto volta e meia acontece comigo. E como costumo viajar em meus pensamentos quando posso não estar ao volante – às vezes faço lá, também, ainda que perigosamente! – restou-me imaginar, tentar adivinhar, o que teriam dito Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Sócrates, Jesus, quando dos seus últimos suspiros.

Aquela gente laranja na estrada faz o Brasil andar. Só cheguei a São Gonçalo porque uns braços esticaram o asfalto e permitiram-me a passagem. Como foram postas as pedras no Rio de Janeiro, do jeito que escrevi num outro texto. Pedras ao chão, que passem os que podem!

De um lado a outro, cruzamos as fronteiras, desbravando um Brasil imenso, maravilhoso. Se há calor, está lá o rapazinho com a latinha de refrigerante ou água a me oferecer na hora! Se tenho fome, uns biscoitos de polvilho resolvem rapidamente o meu problema. E se Antônio quer se divertir é possível comprar, no garoto magricela sem camisa, uma lanterna que, afixada na cabeça, ilumina o carro inteiro e faz meu menino ser o Homem-da-Luz (ou qualquer coisa parecida)!

Eu fiquei pensando no cansaço daqueles homens. Tentei calcular a que horas chegariam em suas casas, que casas seriam essas, o que haveria para o jantar, quantas pessoas estariam a sua espera... Aqueles homens de cara preta de asfalto sustentam nosso Brasil, enquanto os corruptos perfumados que vestem terno e têm a cara limpa (?) e suas digníssimas bonequinhas de luxo fabricadas nas academias se preparam para atravessar a estrada nos seus carros possantes... Eu sou a escola. Que vergonha de mim!

Nosso pão vem deles. Dependemos dos garis que nos tiram o lixo de casa, dos varredores de rua, dos padeiros, dos ascensoristas, dos cortadores de grama, dos garotos que lavam nossos carros no lava-jato. Essa é uma massa grande de gente, muito maior do que a dos mauricinhos da vida, que hoje estão com suas capas pretas julgando os ladrões da vez e, ao mesmo tempo, vendo sua hora de sentar-se no banco dos réus chegar. Não é mesmo assim? Num dia de noticiário vemos um julgando. No outro, o juiz é o julgado, numa infame troca de cadeiras.

Eu sou a escola e formei – com direito a todos os protocolos – todos os ladrões que hoje vestem roupas bonitas e estão acima de mim. A esses entreguei o canudo orgulhosa, afagando cabelos, apertando mãos, tirando fotos.

Aos meninos – e meninas, são muitas, tantas! – de uniforme laranja eu desprezei. Descartei: tinham cheiro ruim, Vinham somente para “comer” ou para “dormir”. Não presenteavam seus professores, falavam um português impossível de se compreender, diziam “a gente vamos”, “vou ir ao banheiro”, tinham cadernos sujos de gordura... Não aprendiam como os outros, logo na primeira vez que se ensinava. Não faziam as tarefas de casa, as pesquisas na Internet, não moravam com seus pais, não gastavam um centavo na cantina!

Que tanta luta foi essa a dos pedagogos que citei lá em cima que a gente trabalha tanto para ver morrer pobre quem nasceu pobre? Que luta é essa que se trava ainda – não se trava? – por uma educação de qualidade, que nossos pedagogos estão morrendo, gritando no caixão, e que fica tudo como está, mesmo assim? Tanto que Jesus andou, peregrinou, anunciou! Tão pouca gente entendeu! No final, restou-lhe a cruz e um “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem”... Não seria loucura minha acreditar que este tenha sido também o último suspiro de Sócrates, Darcy, Paulo e todos os outros.

Por aqui, em Iguaba, não vejo nada muito diferente: os excluídos das escolas (aqueles bagunceiros, insuportáveis, dispersos...) estão nos comércios, quando saio às ruas. Estão lá, com seus salários míseros, suas condições desumanas de escravidão a um senhor letrado, diplomado pela escola que sou. Este patrão foi bom aluno, certamente.

Será que é assim que funciona, então? Será que vivi quarenta anos dentro de uma escola para ratificar o engodo?

Às portas dos Conselhos de Classe/versão 2012, quis vir até aqui. Eu grito por aqui, é o meu caminho. Escola tem que valer a pena. Há uns dias encontrei pelas redes sociais alguns ex-alunos agora arquitetos e engenheiros. Senti um orgulho sem tamanho! Mas passar por aqueles homens na tarde de ontem causou-me estranheza, porque sou a escola.

Morando na Região dos Lagos, professores vão à praia e compram empadinhas e refrigerantes com seus ex-alunos-agora-ambulantes. Deixam seus carros estacionados com seus ex-alunos-agora-flanelinhas. E tudo fica como está, quando na manhã seguinte lançam a falta para os ditos-cujos em seus diários de classe, sem sequer se darem conta de que pode haver alguém extremamente cansado do dia anterior, ou vitimado por uma insolação.

Qual será o meu último suspiro? Se a educação transforma, liberta, por que diplomamos os sem-caráter que assumem o poder que nos aprisiona?

Enquanto a resposta não me vem, insisto em sonhar. Eu sonho com uma escola que faça valer a pena para aquele cidadão que vem de tão longe querer sair de sua casa e caminhar até chegar aos seus portões. Eu sonho com uma escola que o acolhe em seu cansaço. Eu sonho com humanidade. Sonho com uma escola que enxerga o menino para além de suas brincadeiras, sonho com uma escola que indaga os motivos pelos quais seus alunos apresentam um ou outro comportamento diferente. Sonho com uma escola que recebe as famílias, que as educa, que é educada por elas.

Enquanto sonho, meus contrastes vão acontecendo: ouvindo meus pais conversando sobre as últimas notícias que assistiram nos jornais da TV – eles não perdem um dia! – envergonho-me, novamente. A escola que sou colocou os dois pra fora quando mal tinham entrado. E produziu os advogados, juízes, ministros, deputados, presidentes, os donos das desonras que assolam o Brasil.

Escola para que, se não vale a pena?

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