quinta-feira, 7 de março de 2013

Às avessas

(O título do texto fala por si, para quem me conhece. Vou dispensar apresentações.)


Então vai ver que pensei tudo errado, desde sempre. Nada do que aprendi com meus pais foi o certo, nada do que estudei na escola valeu. A vida é isto o que está aí, o mundo é o mundo e ponto, a vida é viver agora, porque ninguém sabe o que acontece depois que a gente morre...

Vai ver que ando contra a via, nado contra a corrente, sou o que não deveria ser, vivo às avessas.

Vai ver a importância do relógio é maior que a da minha vida. Importa que meu trabalho se encaixe dentro dos tic-tacs do ponteiro do relógio. Nem um tic a menos, nem um tac a mais. E jamais haverá julgamento sobre a qualidade do que se faz enquanto o ponteiro canta as voltas. Tendo feito, bem ou mal, o serviço, basta.

O valor está nas coisas, e não nas pessoas. E vai ver que é certo colocar o despertador para trabalhar cada vez mais cedo, sair de casa cada vez mais cedo – para voltar cada vez mais tarde – e respirar o mundo lá fora, porque já não é mais necessário viver o interior do lar. Televisões, celulares, computadores, videogames são ligados nas tomadas da sala, enquanto as famílias se conhecem apenas de perfil, como já previa o sábio, maravilhoso, encantador Quintana! Importa que os aparelhos sejam “top de linha”, um melhor e mais caro do que o outro. Aparelhos têm valor de mercado, pessoas não.

É o fim do mundo. Eu não consigo pensar noutra coisa. Acamada por conta de uns sintomas do que espero seja somente uma gripe, vejo meu corpo padecer pelo cansaço de tudo. Estou muito decepcionada.

Meus pais me ensinaram valores ao longo da minha vida. Estão vivos, graças a Deus e, por isso, ainda hoje aprendo com eles. Vejo no que erraram – sim, pais erram! – e no que acertaram. E muito vejo agora, aos quarenta e quase cinco anos de idade. Isto me traz certo conforto: imaginar que Antônio só se dará conta dos meus erros daqui a mais de três décadas! Mas foi através dos meus pais que aprendi a não mentir, a não tirar as coisas dos outros, a defender minhas verdades, a não ser injusta com ninguém, a dar o exemplo.

Meus pais me ensinaram a pensar no dia de amanhã. E me falavam de céu e inferno, como coisas distintas, como consequências dos nossos atos.

Existe céu e existe inferno. Jamais duvidei disto, porque ouvi isto dos meus pais.
Mas eu acho que tem gente que duvida.

O céu que internalizei no coração desde pequena é azul, tem jardins, anjos e animais (ainda tem). Lá ficam as pessoas boas que passaram pela Terra, que fizeram o bem e, por isto, foram absolvidas por Deus de qualquer condenação. Lá as pessoas são espíritos e não se reconhecem como pai, mãe, irmão, primo, enfim. São anjos de Deus e velam pelos que ainda não chegaram lá.

O inferno é quente, vermelho, e arde em brasa. É triste, escuro, barulhento, e nele estão todas as pessoas que, pelo tanto de mal que fizeram não puderam ser abraçadas por Deus, porque ele é fiel, e nos promete salvação. Mas para os que não querem ser salvos, não há o abraço de Deus. E eu imagino quão triste fica o Nosso Senhor ao ver seus filhos caminhando para o fogo por opção própria. Triste destino!

Cada um escolhe, durante a vida, o destino que tomará na sua morte. E enquanto as coisas do mundo vão sendo adoradas, desejadas a qualquer preço, vou pedindo a Deus que me livre das tentações.

Trabalhei vinte e nove anos da minha vida. Vivi quarenta e quatro. É isto, eu comecei aos quinze. E, diante desta tela, agora, um cansaço físico e emocional me deixa em dúvida se valeu a pena...

Nas horas de café da manhã, almoço, café da tarde e jantar sentamos, sempre, todos da casa à mesa. Não há individualidade na casa dos meus pais. Esperávamos papai chegar da oficina, às vezes a comida esfriava por um atraso qualquer dele, mamãe esquentava novamente, não se importava. Tínhamos que esperá-lo chegar, para fazermos a refeição. Não se conversava muito, mas estávamos juntos. Ali já estava o exemplo. Sem palavras. Só ações. E até hoje é assim: sempre que vou a casa deles, sentamos todos à mesa para as refeições, e as crianças vão aprendendo o comportamento já aos quatro, cinco, seis anos de idade. Hoje Antônio e eu almoçamos juntos, lanchamos juntos, jantamos juntos. Herdamos o exemplo, graças a Deus!

Mas o mundo que fica no portal da minha casa não me quer perto de Antônio. Não quer mães perto dos filhos. Então, o mundo envia as pessoas que perseguem, que maltratam, que tomam o poder para satisfazerem-se prejudicando o outro. Ninguém mais exige que você seja bom no que faz. É preciso que você faça, faça, faça até que não se lembre mais do rosto que tem seu filho, ou seu marido, ou sua esposa, ou seus pais, ou o cãozinho que você pegou para criar... Nada disto tem valor diante do que o mundo quer sugar de você.

Hoje meu corpo me pediu para parar. Ontem era só um desejo de choro, uma tristeza apertada, hoje é dor. É físico. Tudo o que somatizamos ao longo da vida é dor, é doença. E hoje acordei doente de tudo o que tenho vivido em tão pouco tempo.

Por isto, justamente por isto, dobrarei meus joelhos no chão e agradecerei a Deus. O mundo pode acenar lá fora com seus lobos disfarçados de ovelhas (ou fazendo questão de revelarem-se lobos, mesmo) à vontade, porque da porta para dentro da minha casa há um Deus nos guardando, a mim e a Antônio. O Deus que inspirou meus pais na minha criação, o Deus que conduziu-me ao trabalho aos quinze anos...

Da vida não se leva perseguição, covardia, imposição, intolerância, soberba, autoritarismo, maledicências. Da vida se leva o que se faz de bom.

Vou me deitar agora e adormecer o cansaço disto que está tomando o meu corpo. Hoje ao acordar, Antônio me contou de um sonho: ele estava num navio que naufragava, e foi parar numa ilha de dinossauros. Ficou amigo deles e eles os levaram de volta para casa. Eu estava tomando banho enquanto ele me contava o sonho. Eu chorei sob a água gelada do chuveiro. Pedi a Deus que abençoe meu menino para sempre!

Meu navio anda naufragado e não avisto ilha para me salvar. Muito menos pescoços compridos de dinossauros. Mas eu já estou com quarenta e quatro anos de idade. Antônio, na plenitude do céu, aos sete anos, é a minha certeza da presença de Deus aqui em casa.

Ainda sonho com o céu. Mesmo vivendo às avessas.

2 comentários:

  1. E eu, ainda luto para não perder o céu!
    Se nesse turbilhão de contra-valores, estar às avessas for lutar por coerência de vida, que estejamos às avessas, então. Quem sabe a gente consegue "desvirar"? Rsrs

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  2. Amiga, pela primeira vez nesse pouco tempo que a gente se conhece (e parece que faz tanto tempo, né?), posso lhe afirmar que não encontrei palavras para expressar o espanto que tive ao ler o seu texto. Senti, se me permite, um pouco da sua dor... a sua dor doeu em mim. Fiquei tal qual aquele menininho, que saiu pela primeira vez com a namoradinha e lá entre tentativas de uma aproximação mais íntima, não sabe o que fazer com as mãos. Senti que estava meio perdido entre vogais, consoantes, letras, palavras. Não consegui juntar lé com cré. Nem aquela frase estilizada do "Ivo viu a uva"... nem um palavrão quando levamos um susto. Um estrondoso e gostoso PQP! Então, nessa perdição toda, busquei ajuda dos "universitários" e encontrei um que me acenava, desesperado, para que eu pegasse um dos seus incontáveis poemas, para lhe oferecer. E eu perguntei-lhe: _Posso? E o dito cujo me respondeu: _Deve! Pois mesmo tendo escrito antes dela nascer, eu escrevi pensando nela. Oferte-a... ela precisa! Aqui estou lhe trazendo as palavras do meu amigo DRUMMOND (NOTE BEM, QUE É SÓ UM FRAGMENTO):
    "Não dramatizes, não invoques,
    não indagues. Não percas tempo em mentir.
    Não te aborreças.
    Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
    vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
    desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

    Não recomponhas
    tua sepultada e merencória infância.
    Não osciles entre o espelho e a
    memória em dissipação.
    Que se dissipou, não era poesia.
    Que se partiu, cristal não era.

    Penetra surdamente no reino das palavras.
    Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
    Estão paralisados, mas não há desespero,
    há calma e frescura na superfície intata.
    Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
    Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
    Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
    Espera que cada um se realize e consume
    com seu poder de palavra
    e seu poder de silêncio.
    Não forces o poema a desprender-se do limbo.
    Não colhas no chão o poema que se perdeu.
    Não adules o poema. Aceita-o
    como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
    no espaço.

    Chega mais perto e contempla as palavras.
    Cada uma
    tem mil faces secretas sob a face neutra
    e te pergunta, sem interesse pela resposta,
    pobre ou terrível, que lhe deres:
    Trouxeste a chave?

    Repara:
    ermas de melodia e conceito
    elas se refugiaram na noite, as palavras.
    Ainda úmidas e impregnadas de sono,
    rolam num rio difícil e se transformam em desprezo".
    (Carlos Drummond de Andrade)

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