domingo, 17 de março de 2013

Uma rotina e tanto!

(Uma história de amor em família. Uma história de amor pela profissão. A história da rotina da Professora Maria...)


Maria acordou sobressaltada. O barulho do despertador a fez pular da cama. Certamente estava no melhor do seu sono...

Ligou o celular, confirmou a hora. Não tinha jeito, era hora de se levantar. Olhou João, que dormia. Sono pesado. A noite foi longa, o menino Pedro estava febril – garganta inflamada! – e João revezou com ela as idas ao quarto da criança.

Saiu do quarto tranquila: hoje João só trabalha à tarde e, como é dia dela dar aulas só pela manhã e à noite, Pedro estará bem, em casa.

Tomou seu banho, passou um café forte e açucarado, sentou por uns minutos à mesa da cozinha e, enquanto cortava o queijo relembrou os passos da aula de hoje.

Maria é professora de Língua Portuguesa. Ama o que faz. Pega sempre turmas que, a princípio, a escola toda chama de problemática: muita distorção idade/série, portanto, muitos alunos repetentes. “São muitas histórias para ouvir e aprender a viver”, diz ela, sempre que fazem careta quando ela explica seu trabalho.

Dá partida no carro e segue para a escola. Chega um pouquinho antes de o sinal tocar. Dá tempo de dizer “bom dia” a todos que estão pelo pátio e descansar da viagem de quarenta minutos e trânsito pesado. Algumas vezes acontece até de pegar no sono, porque debruça-se sobre a mesa da sala dos professores. Hoje é um dia em que Maria corre este risco, dada a noite que passou. Pensa nisto. E evita sentar-se. Olha o relógio, calcula o horário do remédio de Pedro. Lembra dele e de João. Seu corpo está na escola, enquanto o coração... Ah, esse veio pela metade!...

O sinal toca longamente. É sempre assim, as crianças parecem não ouvi-lo. Há sempre um inspetor de alunos que conduz os alunos para a forma: cara zangada, fria. Os meninos riem. Ele já não os convence mais, o Sr. José. Mas todo mundo obedece e as filas vão se formando perfeitas, dá gosto de ver.

Maria segura a mão de Inácio, o menorzinho da turma do sexto ano, o primeiro da fila, e segue para a sala de aula. Ela segura com firmeza e carinho. Descobriu dia desses que Inácio não recebe carinhos em casa. Criado pela avó paterna – que o faz por “desencargo de consciência”, como ela mesma confessou muito rispidamente a Maria – não conheceu a mãe, nem o pai. Soube, pela avó, que os dois se separaram quando ele ainda era um bebê, casaram-se de novo, formaram novas famílias e ninguém quis ficar com ele. Inácio repetiu o ano. Tem a idade de Pedro, seu filho. E Maria ama Inácio.

Findada a manhã, Maria se aproxima da porta para esperar o sinal de saída tocar. Ela se despede de cada um da turma do nono ano, onde ministra as duas últimas aulas do turno. Passa a mão carinhosamente na cabeça dos rapagões e das moças. Naquela sala há uma menina grávida, a Marcela. E Marcela já disse a Maria que se o bebê for homem irá chamá-lo de Pedro. Uma homenagem ao tanto de histórias que já ouviu Maria contar sobre o seu menino, durante as aulas de Português. Quando passa pela porta, Marcela recebe um carinho especial na cabeça, e outro na barriga. Maria ama Marcela, e já ama o novo Pedro, também.

Despede-se de todos, apaga o quadro, percebe que passou dever demais. Sorri sozinha. Ainda lhe restam trinta minutos. Senta-se, corrige algumas atividades. Separa as folhas de quem errou muita coisa. Fará uma revisão na próxima aula. Hoje Maria não esteve inteira na sala, e ela reconhece que pode ter prejudicado, com isto, a aprendizagem dos alunos. Liga para João e avisa que em quarenta minutos estará em casa. Ela sempre chega em quarenta minutos. Ele sempre sabe. Mas ela sempre liga. Fica esperando o “vem com Deus”, dele.

Chega a casa, beija Pedro. João espera sua vez. Pedro agora é o primeiro a receber os carinhos daquela mulher que já foi sua esposa, mas há dez anos é mãe. E reconhece seu lugar “na fila”. Maria o abraça, sente-se menos cansada da viagem dentro dos braços de João. Sentam-se para almoçar, já está tudo preparado. É o que cabe a João quando ele só trabalha à tarde: organizar o almoço.

Percebendo Pedro melhor, é hora da refeição. João conta como passaram a manhã, Pedro conta sobre um livro que leu, Maria conta sobre o dia na escola. Fala sobre Inácio e sobre Marcela, marido e filho já sabem. Todos muito preocupados com o que será do futuro do menino – aquela vida tão sofrida! – e com o que será do bebê da adolescente. Ninguém sabe quem é o pai da criança...

A conversa flui naturalmente. Até que João avisa que está na hora de ir trabalhar. Pede as chaves do carro a Maria, que o alerta sobre um barulho diferente no motor. Ele ri. “O problema está entre o banco e o volante”, faz a piada de todos os dias, beija Pedro e Maria – exatamente nessa ordem, também – e deixa a casa.

João é professor de Matemática e ama o que faz. Trabalha numa escola mais próxima. Particular. E enquanto espera a chamada do concurso público da cidade onde moram, dá aulas particulares de Matemática e Física nos fins de semana. João e Maria querem comprar uma casa. Estão juntando dinheiro.

Maria recolhe a louça e segue para a pia. Pedro hoje não vai à escola, ainda não está bem. Volta para a cama e liga a televisão. Mas acaba adormecendo.

Ela volta da cozinha com a toalha de pratos ainda nas mãos e olha seu menino. Fecha as cortinas do quarto, desliga a TV, ajeita-lhe o travesseiro e o lençol. Encosta a porta. Vai para a sala de estar com seu material preparar a aula da noite. Hoje dará aulas de produção textual para seus alunos da EJA. Prepara a melhor aula que pode.

Quando João chega, Maria e Pedro já estão lanchando. Conversam rapidamente sobre o dia de trabalho dele. Maria pega a bicicleta – agora a escola fica a dois quarteirões da sua rua – e vai ao encontro dos seus senhores, que a recebem no portão, carregam sua bolsa, seus livros, lhe trazem frutas e verduras. Certa vez Maria ganhou de um deles uma galinha da roça! Maria se diverte, é uma noite feliz. A aula acaba e ninguém quer ir embora, mas o ônibus chega, carrega todo mundo e sai, levantando poeira.

O caminho de volta Maria faz em oração. Agradece a Deus pelo seu trabalho, pelos seus alunos, pela família linda que tem. Agradece porque a febre de Pedro cessou, agradece porque ama a sua profissão. E pede a Deus que o seu dia de amanhã seja, da mesma forma, abençoado.

Entra em casa sem fazer barulho. Os dois já estão dormindo. Toma um banho quente e, antes de deitar-se ao lado de João, confere se o despertador está acionado. Amanhã a rotina será a mesma, naquela família. Uma rotina e tanto!

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